A decisão do Presidente da República de requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo sobre o aborto é mais que um pró-forma. Cavaco Silva comprometeu-se, ainda em campanha eleitoral, a convocar o referendo, se, uma vez em Belém, a Assembleida da República lhe fizesse chegar uma proposta da maioria nesse sentido. É o que fará, certamente. Para além do ofício dirigido ao presidente do TC, uma exigência legal e constitucional, Cavaco Silva há-de dar nos próximos tempos um sinal político, um sinal pessoal, um cunho. Como se sabe, em 1998 Cavaco Silva acabou por ver o seu nome associado a um movimento pelo "não", onde pontuavam outras figuras de relevo do PSD, do CDS/PP e muitos independentes. Muitos deles, coincidência ou não, estiveram com Cavaco nas eleições presidenciais do início deste ano.
Com a atitude hoje tornada pública, Cavaco revela um equilíbio entre o que é o cumprimento do dever institucional como PR e o cumprimento do que foi dito e prometido em campanha eleitoral (coisa rara hoje em dia). Só falta o cumprimento com o que são os seus princípios pessoais, íntimos e também, porque não dizê-lo, ideológicos. Aí, a decisão será três em um. Quem duvida que Cavaco Silva venha a dar sinais até à realização do referendo pode ler (ou reler) o discurso que o Presidente fez ontem na Fundação Calouste Gulbenkian, intitulado "Que valores para este tempo?" e que passou despercebido a muito boa gente.
Parece que não, mas está lá tudo. Quem quiser ler com mais atenção pode até dedicar-se a um bom exercício, que é verificar quantas vezes é referida a palavra vida no discurso. Fica aqui um extracto e o respectivo link: "De facto, sem um ideal de vida em comum e sem os valores que o realizam, não haveria laços que ligassem os homens no tempo. Um grupo sem valores comuns não seria uma sociedade, porque nele faltaria o sentido, a esperança, o futuro. Aí só haveria a força, para manter os homens juntos. E a força, concordarão comigo, não funda o laço social".
Numa altura em que José Sócrates tem tanto para explicar - entre introdução de portagens em algumas SCUT, aumento dos preços da electricidade, taxas moderadoras nos internamentos hospitalares, entre outras "trapalhadas" (como lhes chama a oposição) -, fica ainda demonstrado que o primeiro-ministro, enquanto tal ou como secretário-geral do PS, foi demasiado cedo para o terreno em defesa do "sim" no referendo à interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas de vida. Tão cedo que ainda mal o projecto de lei do referendo estava a ser aprovado no Parlamento já estava o chefe do Governo a defender o "sim" em colóquios, convenções e conferências. Muitas, ou todas, dirigidas ao consumo interno da preparação para o congresso socialista. Sem sequer ter o decoro de esperar pelos passos necessários para a tomada de decisão de Belém. Fosse essa a decisão final ou uma exigência intermédia, como a de hoje.