segunda-feira, outubro 23, 2006

O buraco na bandeira


Pacheco Pereira contesta a definição de "extrema direita" dada aos manifestantes que, em Budapeste, protestam contra o governo de Ferenc Gyurcsany. Concordo com a observação de Abrupto. É necessário explicar que não é a extrema-direita que está na rua, mas parte muito significativa do país. O Pedro, aqui no Corta-Fitas, tem um magnífico post sobre a revolução húngara de 1956 e peço aos leitores que também leiam com atenção aquele texto. O que tentarei fazer aqui é traçar uma tentativa de explicação da crise que está a rebentar nos países pós-comunistas do leste da Europa os quais, não podemos esquecê-lo, são nossos parceiros na União Europeia.
Superficialmente, os tumultos de Budapeste são um protesto contra o Governo. Mas penso que não são apenas isso. A sociedade húngara está profundamente dividida e a pagar os custos de não ter feito o seu ajuste de contas com o passado. Já escrevi isto aqui: os vencedores do antigo regime são os vencedores de hoje; os perdedores continuam perdedores.
Em 56, não existe apenas um elemento de levantamento nacional, mas parcialmente o conflito foi uma guerra civil. Seguiu-se um compromisso (a Hungria teve a mesma reacção depois da revolução fracassada de 1848-49, contra os austríacos, o que deu a monarquia dual austro-húngara) e essa fase de compromisso beneficiou muita gente. O regime comunista era um pouco mais aberto, muito corrupto e numerosas famílias tiveram amplos privilégios. Estes e os seus filhos foram os vencedores da "democracia". Ponho a palavra entre aspas porque é óbvio que a democracia húngara (tal como acontece com as democracias dos países pós-comunistas) tem uma qualidade deficiente. Não existe verdadeira liberdade de Imprensa e as instituições não impedem os abusos do poder. O parlamento é uma anedota. É um tema lateral, mas o país não resolveu o seu passado fascista, o anti-semitismo, o racismo em relação aos ciganos.
A história da "extrema-direita" serve os interesses deste grupo, que se apoderou do poder de forma imoral e que se recusa a ouvir o seu próprio povo, cuja indignação está a atingir os limites. Gyurcsany conta com o ocidente para manter o seu governo: se a "extrema-direita" é quem está na rua, então ele é o garante da legitimidade; outro mito que se tenta fazer passar é o de que a direita democrática (que perdeu as eleições de Abril por pouco, pois o primeiro-ministro mentiu à população) está a ser um instrumento da "extrema-direita". Ora, esta não tem qualquer expressão eleitoral e não conseguiu eleger um único deputado. Em resumo, não existe.
Conheço algumas histórias de 56. São histórias de pessoas derrotadas, as que sobreviveram. Elas são o buraco na bandeira. Já não existe a odiada foice e martelo para cortar, mas continua a existir aquele vazio na memória. Hoje, nas cerimónias oficiais, os derrotados ficaram de fora e os vencedores até da sua revolução se conseguiram apropriar. Os mesmos que lhe chamavam contra-revolução.

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