Carta aberta a Bernardino Soares (1)
Meu caro,
Lembrei-me de lhe escrever estas linhas ao saber as últimas notícias relacionadas com a Coreia do Norte. Não, não se trata de mais nenhum teste nuclear: depois do voto unânime no Conselho de Segurança da ONU em oposição total ao teste anterior - a que se juntou até a China, governada por um "partido irmão" do norte-coreano - o ditador de Pyongyang terá agora de pensar duas vezes antes de prosseguir na sua louca escalada rumo ao clube atómico em vez de providenciar condições para alimentar os habitantes do país, que não dispõem sequer das calorias necessárias ao sustento quotidiano.
Claro que há por lá muita falta de pão. Mas interessa-me agora sublinhar a falta de outro bem essencial: a liberdade. Refiro-me, caro Bernardino, à notícia divulgada esta semana sobre a ausência absoluta de liberdade de imprensa na República "Popular Democrática" da Coreia, característica que a coloca à cabeça de todos os países do mundo nesta matéria. Uma vergonhosa lista negra, divulgada pelos Repórteres Sem Fronteiras. Diz o mais recente relatório desta prestigiada organização internacional que a Coreia do camarada Kim Jong-Il forma, com a Eritreia e o Turquemenistão, o "trio infernal da liberdade de expressão". São três países onde jamais alguém como eu poderia dirigir-lhe umas linhas deste género: a blogosfera lá é uma miragem. Aliás, o próprio acesso à Internet também. São, de resto, países onde também você nada faria do que faz agora: um líder parlamentar, naquelas paragens, está condenado ao desemprego. Se há coisa que não existe em Pyongyang é parlamento.
E no entanto, Bernardino, aqui há uns anos você admitiu que a Coreia do Norte fosse uma democracia. Foi numa entrevista ao Diário de Notícias que deu imenso que falar e lhe valeu inúmeras críticas. (Não críticas internas, claro: o PCP é um partido onde todos estão sempre de acordo, obedecendo "à vontade do colectivo", como se diz no jargão comunista.) Confesso-lhe que dei algum desconto a essas desastrosas declarações, interpretando-as como um deslize provocado pela sua inexperiência, pela sua extrema juventude à época e pela necessidade de agradar à geração da clandestinidade, que tutelava o partido.