Grandes contos (7): Vergílio Ferreira
Há em Portugal uma espécie de pudor atávico em praticar a arte do conto - característica que felizmente tem vindo a dissipar-se nas duas últimas décadas, com nomes que vão de Mário de Carvalho a Rui Zink. Entendido como género "menor" pela generalidade dos exegetas lusos de matriz universitária, o conto foi sendo considerado uma espécie de parente pobre da nossa literatura. Quem o cultivava quase tinha de pedir licença prévia para o efeito.
Alguns dos mais estimulantes autores portugueses do século XX, como Vergílio Ferreira, José Rodrigues Miguéis e José Cardoso Pires, dedicaram uma atenção marginal ao conto, sem repararem por vezes que nessas breves páginas se concentrava do melhor da sua escrita. Os notáveis Contos de Vergílio Ferreira, reunidos em volume em 1976 (Edição Bertrand), são bem a prova disso. Trata-se do espelho perfeito da obra de um romancista que começou integrado na corrente neo-realista e depois se tornou uma das vozes mais originais do nosso idioma.
Contos reúne ficções originalmente repartidas por dois títulos: A Face Sangrenta (1953) e Apenas Homens (1972). É um Vergílio Ferreira em transição da escola realista para a temática existencial que viria a coroar a fase "madura" da sua obra, este que emerge num dos mais tensos e vibrantes contos que conheço. Chama-se O Encontro e arranca deste modo tão sugestivo: "Agora a serra descia a toda a pressa para a aldeia. Depois, tranquila, alastrava devagar num grande vale, para subir ainda, suavemente, lá ao longe. Quebrado de cansaço e quase de surpresa, o engenheiro parou um instante no alto de um penhasco, soprando o fumo largo do cigarro, olhando em roda o silêncio da tarde. Um grande vento de solidão e montanha embatia-lhe no peito, inchando-lhe a camisa desapertada, penetrando-o de grandeza e de um incerto pavor."
Frases magníficas, num português sem rugas, mas que nos introduzem afinal num mundo primitivo, com as suas anacrónicas noções de honra e os seus insólitos rituais de inspiração bíblica. Vergílio Ferreira, escrevendo no Portugal de Salazar, descreve um país ancorado nos confins dos tempos e que permaneceu inalterado quase até aos nossos dias. Um crítico marxista falaria em luta de classes nesta história do engenheiro anónimo, oriundo de Lisboa, que se confronta com os códigos vigentes numa remota aldeia do interior. Na longa cena final, redigida quase com pulsão cinematográfica, de súbito "uma submissão milenária esmagou os dois irmãos" sedentos de vingança.
Mas esta é uma narrativa que não se deixa aprisionar por esquematismos de ordem estética ou ideológica: O Encontro merece lugar destacado em qualquer recolha dos melhores contos portugueses. E no entanto o autor, num prefácio escrito para a edição de 1976, quase pediu desculpa aos leitores pelo atrevimento: "Escrever contos foi-me sempre uma actividade marginal e eles relevam assim um pouco da desocupação e do ludismo." Não havia necessidade. O Vergílio-Ferreira-contista nada fica a dever ao Vergílio Ferreira-romancista: em qualquer dos casos é sempre um vulto maior das nossas letras.