domingo, setembro 30, 2007
Fora de série (9)
No meio da sua saga, Kimble, com uma moral cristã acima de toda a prova, encontra sempre tempo, forças e disponibilidade para ajudar o próximo - mesmo foragido à Justiça e sempre com o tenente Philip Gerard à perna. Seja uma dona de casa em apuros, um negro injustiçado pelo racismo ou um gato em cima do telhado (estou a exagerar). A série de Roy Huggins e Quinn Martin foi um estrondoso sucesso nos EUA, sendo emitida de 1963 a 1967 na ABC. Quando a série deu em filme, nos anos 90, e com Harrison Ford no papel de Kimble, não fiquei desiludido. Pelo contrário. A angústia de episódios sem um fim à vista resolveu-se ali em duas horas e tal. Mas resolveu-se bem e a fuga do One-Armed Man, que escapava sempre por um triz na televisão, ali não dura muito. Sempre é menos angustiante.
Etiquetas: fora de série
Notas duma viagem no fim de Setembro
Em Belfast a chuva não é um acontecimento. Ela cai num choro contínuo, de mágoas ancestrais. Um casal jovem passeia o bebé em Donegall Square num carrinho de coberto por uma capota transparente. As bicicletas rolam indiferentes sob os oleados dos seus ciclistas. O povo ávido de se esquecer, escapa pelo meio da chuva para os seus pubs e bares, para bem regar o fim da tarde.
Em Londres, um gigantesco formigueiro humano, multirracial - o sonho realizado de qualquer verdadeiro internacionalista - labora numa impressionante eficiência e harmonia. Do aeroporto, ao trânsito na cidade, ou numa loja de pronto a comer, tudo funciona "sobre rodas". Nota-se prosperidade, e as pessoas são simpáticas e cooperantes. A mim, até um tardio jantar de Fish and chips me soube pela vida no Langan’s em Mayfair (o local indicado para encontrar genuínos indígenas na tradicional e entusiástica copofonia).
Cai sempre bem um sorriso ou uma piada de ocasião ao viajante solitário, em ambiente estranho e natural tensão. Aconteceu de madrugada, no hall do hotel em Belfast à espera de um táxi para mais uma jornada de viagem e aeroportos, quando comentei com o recepcionista um curioso pássaro de cauda comprida que observava a saltitar no jardim. O simpático irlandês, disse-me o nome do bicho (perdi a nota); e com um sorriso irónico tratou de me informar que, segundo o saber popular, eu teria que ver outro igual antes de partir, ou a visão significava um sinal de azar. Não vi, e cheguei esta tarde a Lisboa, à Portela, sentado na fila treze, de boa saúde e disposição.
Memória
As emoções básicas (crónica) XIV
Trata-se evidentemente de uma história. Mas o ponto é que a maior parte das obras de arte estão à partida condenadas ao esquecimento. E muitos autores vivem na doce ilusão de que podem eventualmente criar obras que lhes sobrevivam. A estatística é, no entanto, muito desfavorável. Talvez um trabalho em cada mil consiga ser lembrado dez anos depois de ter sido feito; talvez um em cada cinco mil sobreviva 50 anos. E um em dez mil, um século.
Pensei nisto enquanto lia um livro em que paguei quase por acaso. Chama-se Atlântida, escrito por um francês, Pierre Benoit. O livro foi famoso no seu tempo (1919) e teve duas versões em cinema, uma das quais devo ter visto parcialmente, há muitos anos, certamente a sonora, de Pabst, em 1932.
Nesta fantasia, dois exploradores percorrem no deserto zonas inexploradas e encontram o reino de Atlântida, dominado por uma rainha, Antinea, que manipula e mata os seus amantes, formando uma verdadeira colecção. Para o efeito pouco importa. A história é cruel e mexe com o imaginário erótico masculino. O enredo é algo ultrapassado, com um fantástico pouco interessante e menos credível.
E, no entanto, dei por mim a devorar o livro. Se as últimas páginas foram mais penosas, o início pareceu-me fulgurante.
De súbito, estava a revisitar as aventuras de Beau Geste (lembrei-me do filme); e também recordei O Deserto dos Tártaros, de Buzzati; parecia por instantes que poderíamos viajar dali, directamente para O Céu que nos Protege, de Paul Bowles; existia o mesmo fascínio pelos abismos de um conto de Camus que me impressionou. Sobretudo, detectavam-se pedaços de um autor que marcou a minha juventude, Jules Verne.
Atlântida não ficará na história da literatura, mas há farrapos seus que contaminam outras paragens.
Cada obra de arte é como um código genético pessoal. E assim é com os livros, cujas histórias atravessam as gerações, em diferentes variações de emoções básicas.
Um escritor de ficção científica, Clifford Simak, escreveu uma pequena novela, Time and Again, traduzida em português por Guerra no Tempo, número 34 da famosa colecção Argonauta. Foi um livrinho que me impressionou muito, quando o li, talvez aos 14 ou 15 anos. A história é complexa, com vários patamares de tempo e personagens que viajam do futuro para tentarem alterar o seu presente e personagens do presente que vão para o passado para se refugiarem do futuro, deixando mensagens do passado para o presente. Lembram-se dos filmes Terminator? Era a mesma ideia.
Recentemente, passou nos cinemas um filme europeu feito com meios sofisticados, O Som do Trovão, que não recolheu os aplausos da crítica. A meu ver, mal. Uma empresa faz viagens aos passado, mas num desses saltos, o passado é alterado. Essa mudança temporal chega em ondas que vão alterando o presente, em camadas sucessivas, apagando tudo o que passou. No final, percebemos que a única alteração foi a morte de uma borboleta, 65 milhões de anos atrás. A história é de Ray Bradbury, outro autor cujas ideias têm contaminado muitas obras alheias.
Vivemos na era do explícito, sexo explícito, action replay em câmara lenta, mensagens sem subtileza, morte em directo, repetida, repetida. Parece não haver lugar para metáforas ou exercícios de estilo. Mas trata-se sobretudo de uma ilusão. A alma humana, atrás dos gestos, esconde os mesmos mistérios de sempre.
Parece que já descobrimos tudo, mas a nossa fantasia sabe que não é assim.
O maior desconhecido não tem a ver com desertos inexplorados, mas com o que não sabemos sobre nós próprios. Os nossos medos (da morte, do sexo), as alegrias e tristezas, as aversões e fúrias.
A inveja de Salieri pelo génio de Mozart, por exemplo, que pode ser medo, mas que tem uma componente de angústia e outra de surpresa pelas maravilhas que o rival compõe. O conflito é semelhante ao de Atlântida: sabemos à partida que um dos exploradores matou o outro e, quando o sobrevivente conta a história, percebemos de imediato que a rivalidade entre os dois era inevitável. Mas de que paixão nasceu? Da ira, da inveja, do desprezo?
Tal como o capitão Saint-Avit dessa história, na posse de um terrível segredo, rejeitado pelos seus camaradas, também o compositor Salieri vive consumido pelo que não pode confessar: o seu ódio silencioso a um rival que o parece derrotar além da vida, o genial Mozart, a quem os deuses permitiram a imortalidade.
Etiquetas: Crónicas, emoções básicas, surpresa
Da vida na cidade
Domingo
Naquele tempo, disse Jesus aos fariseus: «Havia um homem rico, que se vestia de púrpura e linho fino e se banqueteava esplendidamente todos os dias. Um pobre, chamado Lázaro, jazia junto do seu portão, coberto de chagas. Bem desejava saciar-se do que caía da mesa do rico, mas até os cães vinham lamber-lhe as chagas.
Ora sucedeu que o pobre morreu e foi colocado pelos Anjos ao lado de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado. Na mansão dos mortos, estando em tormentos, levantou os olhos e viu Abraão com Lázaro a seu lado. Então ergueu a voz e disse: ‘Pai Abraão, tem compaixão de mim. Envia Lázaro, para que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nestas chamas’. Abraão respondeu-lhe: ‘Filho, lembra-te que recebeste os teus bens em vida e Lázaro apenas os males. Por isso, agora ele encontra-se aqui consolado, enquanto tu és atormentado. Além disso, há entre nós e vós um grande abismo, de modo que se alguém quisesse passar daqui para junto de vós, ou daí para junto de nós, não poderia fazê-lo’. O rico insistiu: ‘Então peço-te, ó pai, que mandes Lázaro à minha casa paterna – pois tenho cinco irmãos – para que os previna, a fim de que não venham também para este lugar de tormento’. Disse-lhe Abraão: ‘Eles têm Moisés e os Profetas. Que os oiçam’. Mas ele insistiu: ‘Não, pai Abraão. Se algum dos mortos for ter com eles, arrepender-se-ão’. Abraão respondeu-lhe: ‘Se não dão ouvidos a Moisés nem aos Profetas, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão’.
Da Bíblia Sagrada
Etiquetas: Cristianismo, Religião
sábado, setembro 29, 2007
Postais blogosféricos
Etiquetas: postais blogosféricos
Os barões assinalados
Etiquetas: Política-PSD
A minha reacção primeira e última
Primeiras reacções
Eis a questão…
Em cheio
Preparem-se
Vai começar a debandada das "elites" sociais-democratas. Paula Teixeira da Cruz bem avisou.
Etiquetas: Política-PSD
Mais derrotados
Etiquetas: Política-PSD
Derrotado
Etiquetas: Política-PSD
sexta-feira, setembro 28, 2007
Portugal
Etiquetas: ocidental praia
O mundo está perdido, é o que é
Etiquetas: Bocas
They are the world
Mais vinte cidades que jamais esquecerei (XIX)
Etiquetas: cidades
Porque hoje é sexta-feira
- Ha, ha - respondi.
- Você é... uma pedra. Vai morrer sem amar. Como o Super-Homem.
- Eu amo seis mulheres. Sete, incluindo a crioula. Sete, conta de mentiroso. Amo sete mulheres. Uma delas é preta e outra é japonesa.
- Não acredito.
- Amo mesmo. Amo qualquer mulher que vá para a cama comigo. Enquanto dura o amor, amo como um doido.
- Você muda de mulher toda semana - disse F.A.
- Toda a semana porra nenhuma. Mariazinha eu conheci no baile do Municipal, ela estava sambando em cima de uma mesa e eu dei uma dentada na bunda dela, vai fazer um ano que isso aconteceu.
- Porque você fez isso? - perguntou F.A.
- O quê?
- Deu a dentada na, na moça.
- Sei lá. Tinha quinhentas mulheres trepadas na mesa, toda mesa tinha uma mulher em cima se exibindo, acho que aquilo me irritou. E a Mariazinha estava com a bunda quase de fora.
- E ela? O que foi que ela fez?
- Ela deu um grito. Então os caras da turma dela engrossaram e partiram pra cima de mim, e você sabe como é que é, tem sempre alguém levando as sobras e entrando na briga também, foi um sururu espectacular, durou só uns cinco minutos, mas acho que até o governador gostou de ver. Quando saí da enfermaria ela estava na porta e disse “bem feito”. Respondi “eu te amo”, e amava mesmo, e amo até hoje.
Fora de série (8)
Vem isto a propósito de Os Vingadores (Grã Bretanha 1961-69), a minha saudosa série de TV que eu devorava fascinado cada episódio, através da velha televisão a válvulas da casa dos meus pais. No início, quando ainda mal sabia ler as legendas, assistia aos episódios numa semi-clandestinidade. É que numa família pouco liberal como a minha, a criançada tinha impreteríveis horas para se deitar. Mas havia truques e manhas para me fazer passar despercebido: no chão, de pernas cruzadas a respirar baixinho, num discreto recanto. Até que o meu pai dava conta que eu ali estava, tenso, mas flagrantemente feliz. Às vezes ele, adorável como sabia ser, suspirava e lá condescendia; outras, corria-me dali para a cama, cortante e autoritário, mesmo na altura do emocionante desenlace. Construí a relação com o meu pai com cumplicidades e desavenças. Ele era enorme, irascível e... meigo. Quantas vezes ficávamos os dois noite fora a ver Os Vingadores ou o Comissário Maigret... Os anos que passaram, progressivamente, acentuaram a nossa crónica incomunicabilidade. Mas como eu o admirava, mesmo quando na adolescência lhe ganhei os primeiros jogos de xadrez...
Num rebanho de cinco irmãos, cada um tinha que sobreviver e afirmar-se como podia, e nós lá arranjávamos os nossos "fetiches" ou "causas". Eu, além do Sporting – um factor não diferenciador -, era simplesmente pela Inglaterra, nas marcas de carros, no futebol, no rugby ou na Fórmula I. Até me dava um secreto prazer saber que a criadora do Noddy era britânica.
Os Vingadores possuía arrebatadores atributos para me seduzir: mistério, um herói com estilo, carros, perseguições de automóveis e mulheres deslumbrantes. Sabiam que Catherine Gale, a miúda (Honor Blackman) da terceira série veio a ser a Bond Girl de 007 contra "Goldfinger"?
John Steed (Patrick McNee) era um gentleman, imperturbável herói, com o seu charmoso meio sorriso, um inseparável chapéu de coco anti-balas e o conveniente guarda-chuva, não só por causa do britânico clima, mas por ser uma arma secreta, ao bom estilo de 007.
O resto eram lustrosos e potentes automóveis sport, em perseguições pelas ruas de Londres, nas estradas e nos campos da minha mistificada Inglaterra dos Beatles. John Steed conduzia um espectacular Rolls Royce Silver Ghost de 1927. Gostava do jeito afidalgado do herói e daquela pronúncia ao estilo BBC. Gostava dos cenários rocambolescos, dos palácios, bibliotecas e frondosos jardins. Também me deixei seduzir por Emma Peel, (Diana Rigg) mulher resoluta e ágil no seu macacão de couro, quase tão feminina como a idílica fada do Pinóquio. Mais tarde foi substituída por Tara King (Linda Thorson), na quinta série, também sexy mas mais irreverente, a acompanhar o decurso das modas da revolucionaria década de sessenta. Por fim lembro-me da “Mãe”, o fleumático e misterioso chefe da organização ao serviço de Sua Majestade. Só no início da penúltima série nos é revelado o seu aspecto físico: um homem imensamente obeso sempre sentado na sua cadeira de rodas e rodeado de telefones.
Mas nem sempre devemos voltar aos locais onde um dia fomos felizes. Há uns anos revi um episódio da série e confesso que sofri uma certa desilusão: os efeitos especiais não eram nada do outro mundo, e o guião menos sofisticado do que me parecia então. Essa simpática ilusão fora criada à conta da minha ingenuidade, e dos afectos vividos nesse tempo. É talvez por isso que a série Os Vingadores me trará para sempre boas memórias.
Etiquetas: fora de série, Memórias
quinta-feira, setembro 27, 2007
Muito barulho para nada
A direita em convulsão
Etiquetas: Política-PSD
E lá fora... (2)
Portela + 1
E lá fora...
É obra
No youtube hoje às 15:55, o video : Santana Lopes versus José Mourinho versus SIC Notícias era referido no indicador "Honors for This Video como:
#54 - Most Viewed (Today)
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#23 - Top Rated (Today) - News & Politics
#31 - Most Discussed (Today) - News & Politics
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#9 - Top Favorites (Today) - News & Politics
e
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Maringá
O Corta-Fitas sofreu hoje uma explosão de visitas made in Brasil. Será que os militantes do PSD de Maringá nos estão a honrar com a sua entrada neste humilde blogue?
Já agora, estas militantes de outras causas (mais nobres) são dedicadas ao Pedro Dória - uma prova que a fama das nossas sextas-feiras já chegou ao Brasil...
Nota falsa
Etiquetas: Fracturas expostas
Fora de série (7)
Michael Landon nunca escondeu a agenda moralista da série. Ele próprio decidiu fazer dos escritos de Laura Ingalls Wilder (Little House, 1938) um exemplo. E o que é certo é que durante nove anos consecutivos (de 1974 a 1983) a NBC fez sucesso ao defender os valores da família unida que superava sempre todo o tipo de contrariedades e até as discriminações de cara alegre. À parte o irrealismo moral, foi uma série que me prendeu à televisão e que hoje me leva a questionar o que fez desaparecer tão repentinamente a figura do Pai da cultura familiar ocidental.
Etiquetas: fora de série
quarta-feira, setembro 26, 2007
10 elevado a 23
Etiquetas: Fracturas expostas
A pedido de alguns anónimos salivantes de expectativa
Etiquetas: Grandes obras
Então é assim...
Etiquetas: Profetas da desgraça
Mudar de caras ou transfigurar
O PSD acabou
Às vezes, é preciso dizer o evidente
Etiquetas: Política
Vamos a eles!
Carlos Charmeur
12 moedas
terça-feira, setembro 25, 2007
It walked with its arms swinging,
wanted the brook to be a river,
the river to be a torrent,
and this puddle to be the sea.
(...)When the child was a child,
It was the time for these questions:
Why am I me, and why not you?
Why am I here, and why not there?
When did time begin, and where does space end?
Is life under the sun not just a dream?
Is what I see and hear and smell
not just an illusion of a world before the world?
Given the facts of evil and people.
does evil really exist?
How can it be that I, who I am,
didn’t exist before I came to be,
and that, someday, I, who I am,
will no longer be who I am?
Ainda o Aquilino e a festança dos jacobinos
Os monárquicos não querem Aquilino em Santa Engrácia por causa da sua eventual participação no regicídio, os órfãos do Dr. Afonso Costa querem-no em Santa Engrácia precisamente por isso.
Sobre os dislates da jornalista Fernanda Câncio, a respeito da monarquia constitucional e o regicídio, ler na integra o brilhante texto de Pedro Picoito no Cachimbo de Magritte.
P.S.: Ó Pedro, tem paciência, mas confessa lá onde gamaste esta preciosa ilustração, e eu prometo não te chamar monárquico!
Etiquetas: Centenário da república, Ler os outros
Novos, Velhos Brinquedos
Isto fez-me pensar. Agora que sei que vou ser mamã de um rapaz, fico a reflectir naquilo que ainda terei guardado e poderei passar ao meu filho. Vale-me ter sido uma verdadeira Maria-rapaz. O meu irmão herdou uma colecção de berlindes e uns carrinhos que faziam intermináveis filas à volta da cama - como se eu já adivinhasse o futuro - e uns Playmobiles que já viveram um grande número de histórias inventadas por abundantes mãos. Tenho uma colecção de borrachas, de diferentes formas e feitios, que de vez em quando vou espreitar para ver se ainda cheiram a novas. Aquele perfume faz-me andar alguns anos para trás, onde me vejo de vestidinho e cabelo bem mais curto.
Espero que o pequeno bebé que aí vem também um dia possa dizer com o mesmo orgulho: “São da minha mãe” e que isso não lhe cause muita estranheza. Pelo sim, pelo não, o pai já está encarregue de ir ao sótão procurar também os seus brinquedos.
Prognósticos só no fim
Retalhos da vida de um médico*
- Então, sr. dr., hoje está de serviço?
*título de Fernando Namora
Desculpem qualquer coisinha
Diz-me o que lês...
Originariamente intitulado Legenda Sanctorum, esta brilhante obra sobre “o que deve ser lido dos santos” publicado em meados do Século XIII, terá sido um dos primeiros bestsellers da nossa civilização cristã, com cerca de dez mil cópias manuscritas. De resto pergunto-me se o livro (sublimemente ilustrado com obras de Giotto, Duccio, Fra Angelico, Simone Martini, Piero della Francesca, Masaccio, Masolino, Pietro Lorenzetti, Ambroggio etc.) será um mero adereço decorativo, ou se algum dos recentes inquilinos daquele palácio, se dignou a folhear o aquele histórico tesouro literário e artístico.
Etiquetas: Política, Quotidiano
Estações fora de horas
As vidas foras de horas têm que se lhes diga. Isto a propósito de um post antigo que transcrevo para o Corta-Fitas. Uma destas noites, nos arredores de Lisboa, a fila no exterior do guichet da estação de serviço era imensa e a clientela a mais variada para as compras do costume: cigarros, cervejas, embalagens de leite e claro, combustível, quase sempre muito pouco. Junto ao vidro chegavam-nos vozes azedas para com o funcionário que afanosamente ia e vinha até junto do cliente. (Imaginem agora as deixas para a plateia sempre que o rapaz se afastava...). Entretanto, a malta cá fora dividia-se entre sentimentos de indignação para com a incompetência do empregado e a falta de educação daquele comprador intolerante. Nós estavamos obviamente do lado do rapaz que zelosamente procurava despachar aquele exigente pedido fora de horas. O pedido? Ah, sim! Comida para gato.
Um outro mundo, as estações de serviço fora de horas. Falo daqueles estabelecimentos com pré-pagamento, onde se vende gasolina, bebidas, pão, congelados, jornais, revistas e até comida para animais. Certamente saberão do que estou a falar. Em Lisboa há algumas deste género, que dão um grande jeito de dia para um litro de leite ocasional ou uma embalagem de queijo. À noite, pertencem a outro tipo de pessoas. Principalmente frequentadas por noctívagos sem gasolina, mas sobretudo procuradas para compra de cervejas ou cigarros, sem acesso ao interior, todas estas transacções se fazem através de um vido, sem qualquer contacto com o paciente funcionário.
Acredito que estejam todas vigiadas por câmaras, o que, apesar de dar uma certa segurança não nos impede de sentir algum receio. Muitas vezes são miúdos ou maduros em estado alcoolizado ou com vontade de ficar, a avaliar pela quantidade de álcool que levam nos sacos. Outras vezes são solitários, com noites longas, a quem se acaba a companhia da cerveja e dos cigarros. São também locais para taxistas, funcionários com turnos nocturnos, local de passagem entre um bar e outro, viajantes que chegam com frigoríficos vazios, uma última paragem, uma necessidade.
Quando os vejo partir ao volante, de voz entaramelada e com passo incerto, fica por ali um amargo sentimento de impotência e comigo um aperto no coração. À nossa frente, um jovem casal de namorados leva uma noite cheia de precauções, funcionários de uniforme recolhem a casa com cigarros e chocolates e um cavalheiro pede uma revista com capa de corpo inteiro.
A todos, uma boa noite.
segunda-feira, setembro 24, 2007
Payote
Foram uns cogumelos que comi ao almoço.
Fora de série (6)
Boy the way Glenn Miller played
Songs that made the hit parade.
Guys like us we had it made,
Those were the days.
E logo um zoom nos introduzia na residência de Archie Bunker. O irascível, antipático, furibundo Archie Bunker – uma das mais perenes personagens da ficção televisiva de todos os tempos. O típico americano médio, cheio de preconceitos sociais, culturais e raciais. Reaccionário até à medula, apoiante cego de Richard Nixon e da guerra do Vietname, inimigo figadal dos ventos da História que nesses idos de setenta prometiam uma revolução cultural no país mais poderoso do planeta.
And you knew who you were then,
Girls were girls and men were men,
Mister we could use a man
Like Herbert Hoover again.
Um dos mais deliciosos ingredientes da série era o modo como subvertia o dogma então vigente sobre a classe operária como vanguarda social. Archie era operário – “explorado pelo capital”, um remediado sem horizontes –, o que não o impedia de destilar ódio contra os imigrantes que vinham “roubar-nos os postos de trabalho”. Contra os negros, “delinquentes por natureza”. Ou contra os judeus, que “assassinaram Cristo”. Conservador empedernido, rogava pragas ao desconserto de um mundo onde todas as peças lhe pareciam subitamente fora do lugar. Daí nasciam as homéricas discussões que mantinha com o genro, Mike, um intelectual de esquerda que lhe servia de contraponto ao exibir uma fé inquebrantável no progresso.
Didn’t need no welfare state,
Everybody pulled his weight.
Gee our old LaSalle ran great.
Those were the days.
All in the Family (que uma feliz tradução portuguesa baptizou de Uma Família às Direitas ao ser exibida na RTP) tinha diálogos de cinco estrelas, que nos faziam rir até às lágrimas, tornando Archie num ícone popular, malgré lui e as ideias que propagava. Algumas das suas expressões incorporaram-se no vocabulário comum, como “fecha a matraca” (a ordem da praxe para mandar calar a incomparável Edith, a mulher que lhe aturava todos os caprichos) ou “cabeça de abóbora” (o feroz qualificativo que reservava ao genro). Era uma série de texto, mas também de actores, servida por um quarteto de intérpretes de luxo. Carroll O’Connor (Archie), Jane Stapleton (Edith), Sally Struthers (a filha, Gloria) e Rob Reiner (o genro, que na vida real se tornaria realizador de filmes inesquecíveis, como Misery ou When Harry Met Sally). Era um tempo em que nos podíamos rir de todos os tiques e de todos os dogmas. Antes da televisão padronizada, liofilizada, industrial e politicamente correcta.
“A ‘seriedade’ não costuma ser um sinal inequívoco de sabedoria, como julgam os pasmados: a inteligência deve saber rir”, como nos ensinou Fernando Savater. É nisso que penso ao rever hoje cada episódio desta extraordinária série que psicanalizava a classe média americana e se mantém actual, superando as barreiras da moda, do gosto e do tempo. Porque a América de Archie Bunker não morreu: apenas se alterou o suficiente à superfície para continuar tão tacanha como dantes.
Etiquetas: fora de série