domingo, fevereiro 17, 2008

Emoções básicas (crónicas)

O paraíso dos gatos
O paraíso dos gatos é um local cheio de magia. Estranhamente silencioso, tirando o meigo ronronar de contentamento que se propaga pelas nuvens fofas e brancas, como se fosse uma maquinaria de ar condicionado. Também há ocasionais miados, que são talvez conversas filosóficas; e as bulhas de brincadeira, cuja comoção aleatória provoca uma serena indiferença entre as almas.
O paraíso dos gatos é uma tépida construção nas alturas, que o sol aqueceu até ao nervo; feito de um sono prolongado, de seca quietude, e a ocasional orelha que se põe alerta, em busca de sons celestes.
O paraíso dos gatos é uma casa de meditação. E, apesar de tudo, tem uma certa melancolia, pelas saudades de uma vida breve e agitada, que já passou num repente.
O paraíso dos gatos é feito de algodão muito suave, como o colo dos donos (que era, mesmo assim, um tudo de nada frio); e há veludo, para arranhar eternamente; e, quando as luzes se apagam, movem-se na sombra ratinhos brancos, que dá gosto morder, que não estão verdadeiramente vivos e por isso não deitam sangue; o qual, convenhamos, estragaria a brancura toda dessa movimentada brincadeira.
O paraíso dos gatos é uma cidade de corpos aninhados e olhares cruzados. Verdes, amarelados; significativos e pedinchões; por vezes ofendidos, mas sempre por pouco tempo; e há comida até encher; e não é preciso tomar conta dos donos, que são afinal tão estranhos, nas suas preocupações nervosas, nos repentes, nos excessos tontos.

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terça-feira, outubro 02, 2007

As emoções básicas (crónica) XV




Máscaras

Uma crónica a sério deve ter relação com o tempo. Não sendo tão imediato como uma notícia ou uma reportagem, este tipo de texto jornalístico parte da actualidade, de uma pequena observação ou da reflexão do autor sobre acontecimentos gerais, mesmo que não passe da constatação de uma minúcia, de um pequenino costume.
É por isso que estas emoções básicas não são crónicas verdadeiras. No fundo, algumas nem tiveram tema. Infelizmente, não consegui reflectir sobre nenhum dos assuntos que afligem o país. Podia ter falado da crise dos partidos, dar a minha opinião sobre a forma como em cada um deles se degrada a qualidade média dos dirigentes; podia ter mencionado o pecado fundamental da política, de como os poderosos esquecem as promessas que fazem em campanha, uma vez atingido o poder. Além disso, o nosso sistema bipartidário parece não ter solução: um dos partidos atraiçoou a sua própria base eleitoral e o outro abandonou as suas elites numa ilha deserta. Quando houver eleições, as pessoas não irão votar.
Era sem dúvida um excelente assunto, escrever aqui sobre as razões do pessimismo português (o segundo pior da Europa, dizem). Mas confesso que não as entendo. Só poderia dizer banalidades.
Também não cumpri outra das regras de ouro da crónica: embora a forma desta seja criativa, o conteúdo tem de ser rigorosamente verdadeiro. E pelo menos um dos textos da série era totalmente inventado, na realidade um pequeno conto sobre uma parvoíce governamental. E confesso que havia farrapos de ficção noutros textos.
Mas é esta a liberdade que nos dá a chamada blogoesfera. Estas pseudo-crónicas são muito pessoais, quase diarísticas, ao sabor do capricho e esquecidas das boas regras.
Ao ver o que escrevi até agora, percebo que nunca mencionei aqui a emoção da alegria. Falei das outras emoções básicas (do desprezo, até, que alguns psicólogos duvidam pertencer ao grupo essencial, que limitam a seis). Na sua maioria, os textos são sobre a surpresa, talvez porque esta seja a emoção mais apropriada para crónica, já que o mundo nos surpreende em todas as suas variações, e constantemente.
Apeteceu-me, várias vezes, colocar outra palavra na emoção básica que servia de mote e talvez esta lista devesse ter muitas mais, da inveja ao fanatismo, da serenidade ao fascínio, da piedade ao pavor.
Em tempos de pessimismo, no início do Outono, é estranho querer falar sobre a alegria. O céu está cinzento e a rua caótica. As pessoas andam taciturnas e o País parece estar a viver numa espécie de semi-pesadelo, ou pelo menos num sonho intranquilo.
As primeiras chuvas originaram inundações, como se ninguém estivesse preparado para as situações previsíveis. E, se procuro indícios de alegria nas pessoas, encontro sobretudo uma inquietação sem nome: em dois dias, viajei quatro vezes de táxi e três dos motoristas guiavam totalmente passados. O primeiro, furioso, contou-me uma confusa história de um tenente-coronel bêbado que ele transportara e que o insultou à chegada; o homem tinha sido soldado na guerra e jurou-me que o oficial escapara a um bom correctivo; o segundo taxista quase abalroou meia dúzia de carros, sem razão aparente; e o terceiro começou de repente a insultar outro motorista que não tinha feito nenhum erro visível.
No outro dia, pus-me a olhar para a cara das pessoas na rua. A caminho dos empregos maçadores, todas pareciam usar máscaras sombrias. Tinham dormido pouco. Andavam como sonâmbulos no passeio, as faces fechadas, o olhar zonzo, um ar triste.
E como se tornou estranho ouvir de repente o riso de um desconhecido. Parece que aquela gargalhada súbita, saída do nada, é uma espécie de insulto ao nosso fardo de problemas.
Sim, até parece que a alegria já não tem lugar na nossa comunidade. E bastava andarmos um pouco menos distraídos no interior dos nossos pensamentos. Porque de repente, o sol irrompe do tecto de nuvens e desce pela calçada um homem que assobia uma melodia na moda. E, mais à frente, uma rapariga bonita sorri e até parece que com esse pequeno gesto regressou a Primavera.

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domingo, setembro 30, 2007

As emoções básicas (crónica) XIV



1.
No filme de Milos Forman, Amadeus, o aspecto mais fascinante era a questão da inveja artística de Salieri por Mozart. Naquela história, o compositor italiano era o único a compreender a imensidão do génio do austríaco. Mas o pior era o facto do artista menor não ter ilusões sobre a sua falta de talento. E Salieri compreendia que Mozart sabia disso. Sempre me fascinou esta trama simples.
Trata-se evidentemente de uma história. Mas o ponto é que a maior parte das obras de arte estão à partida condenadas ao esquecimento. E muitos autores vivem na doce ilusão de que podem eventualmente criar obras que lhes sobrevivam. A estatística é, no entanto, muito desfavorável. Talvez um trabalho em cada mil consiga ser lembrado dez anos depois de ter sido feito; talvez um em cada cinco mil sobreviva 50 anos. E um em dez mil, um século.
Pensei nisto enquanto lia um livro em que paguei quase por acaso. Chama-se Atlântida, escrito por um francês, Pierre Benoit. O livro foi famoso no seu tempo (1919) e teve duas versões em cinema, uma das quais devo ter visto parcialmente, há muitos anos, certamente a sonora, de Pabst, em 1932.
Nesta fantasia, dois exploradores percorrem no deserto zonas inexploradas e encontram o reino de Atlântida, dominado por uma rainha, Antinea, que manipula e mata os seus amantes, formando uma verdadeira colecção. Para o efeito pouco importa. A história é cruel e mexe com o imaginário erótico masculino. O enredo é algo ultrapassado, com um fantástico pouco interessante e menos credível.
E, no entanto, dei por mim a devorar o livro. Se as últimas páginas foram mais penosas, o início pareceu-me fulgurante.
2.
Os livros que nos parecem hoje menos bons têm, por vezes, momentos fantásticos. Segundo li na Wikipedia, Benoit foi soldado e conhecia o deserto. A sua descrição da expedição militar é intensa e vivida, a paisagem torna-se quase perceptível e os perigos parecem autênticos.
De súbito, estava a revisitar as aventuras de Beau Geste (lembrei-me do filme); e também recordei O Deserto dos Tártaros, de Buzzati; parecia por instantes que poderíamos viajar dali, directamente para O Céu que nos Protege, de Paul Bowles; existia o mesmo fascínio pelos abismos de um conto de Camus que me impressionou. Sobretudo, detectavam-se pedaços de um autor que marcou a minha juventude, Jules Verne.
Atlântida não ficará na história da literatura, mas há farrapos seus que contaminam outras paragens.
Cada obra de arte é como um código genético pessoal. E assim é com os livros, cujas histórias atravessam as gerações, em diferentes variações de emoções básicas.

3.
Um escritor de ficção científica, Clifford Simak, escreveu uma pequena novela, Time and Again, traduzida em português por Guerra no Tempo, número 34 da famosa colecção Argonauta. Foi um livrinho que me impressionou muito, quando o li, talvez aos 14 ou 15 anos. A história é complexa, com vários patamares de tempo e personagens que viajam do futuro para tentarem alterar o seu presente e personagens do presente que vão para o passado para se refugiarem do futuro, deixando mensagens do passado para o presente. Lembram-se dos filmes Terminator? Era a mesma ideia.
Recentemente, passou nos cinemas um filme europeu feito com meios sofisticados, O Som do Trovão, que não recolheu os aplausos da crítica. A meu ver, mal. Uma empresa faz viagens aos passado, mas num desses saltos, o passado é alterado. Essa mudança temporal chega em ondas que vão alterando o presente, em camadas sucessivas, apagando tudo o que passou. No final, percebemos que a única alteração foi a morte de uma borboleta, 65 milhões de anos atrás. A história é de Ray Bradbury, outro autor cujas ideias têm contaminado muitas obras alheias.

4.
Acho que o que me interessa em todas estas fantasias não é tanto o elemento exótico, mas sobretudo o desconhecido. Quando os dois militares avançam pelo deserto e nós não sabemos o que se encontra no seu caminho, este é o momento que mais me interessa.
Vivemos na era do explícito, sexo explícito, action replay em câmara lenta, mensagens sem subtileza, morte em directo, repetida, repetida. Parece não haver lugar para metáforas ou exercícios de estilo. Mas trata-se sobretudo de uma ilusão. A alma humana, atrás dos gestos, esconde os mesmos mistérios de sempre.
Parece que já descobrimos tudo, mas a nossa fantasia sabe que não é assim.
O maior desconhecido não tem a ver com desertos inexplorados, mas com o que não sabemos sobre nós próprios. Os nossos medos (da morte, do sexo), as alegrias e tristezas, as aversões e fúrias.
A inveja de Salieri pelo génio de Mozart, por exemplo, que pode ser medo, mas que tem uma componente de angústia e outra de surpresa pelas maravilhas que o rival compõe. O conflito é semelhante ao de Atlântida: sabemos à partida que um dos exploradores matou o outro e, quando o sobrevivente conta a história, percebemos de imediato que a rivalidade entre os dois era inevitável. Mas de que paixão nasceu? Da ira, da inveja, do desprezo?
Tal como o capitão Saint-Avit dessa história, na posse de um terrível segredo, rejeitado pelos seus camaradas, também o compositor Salieri vive consumido pelo que não pode confessar: o seu ódio silencioso a um rival que o parece derrotar além da vida, o genial Mozart, a quem os deuses permitiram a imortalidade.
E, claro, é uma injustiça quando os deuses preferem os outros...

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segunda-feira, setembro 17, 2007

As emoções básicas (crónica) XIII



A arma encravada


Parece que chego tarde a todas as conversas. Quando tenho alguma coisa de interessante para dizer sobre os temas do dia, já antes alguém disse algo de bem mais inteligente. Isto acontece-me tantas vezes, que me habituei a ficar calado. Vejo os outros a conversar, treinei-me nessa observação. Gosto do exercício. Estou sempre a torcer por alguém, quando há debate de ideias, e fico maravilhado como algumas pessoas têm a arte de, no tempo que demora a incendiar um fósforo, rematar com um argumento demolidor.
O gosto de ouvir os outros a falar tem certamente lados negativos: quando sei que posso ser pertinente, num determinado ponto da conversa, sinto tal desejo de dizer coisas acertadas, que interrompo os outros à bruta, para dizer essa tal frase que entretanto me escapou da ideia. E, no embaraço, levanto a voz, à qual dou uma ênfase que não queria dar à partida.
Ainda é pior quando me fazem uma pergunta: aí, ou a pergunta é certeira e dou a minha opinião ou, o que é mais normal, começo por tentar levar a conversa para o ponto que achava mais importante, mas que não estava contido na pergunta. E o exercício torna-se fútil, pois quem perguntou resiste aos meus esforços. Se, por qualquer milagre, consigo entrar no ponto que queria sublinhar, geralmente já acabou o tempo.
Era isto que eu queria escrever, não apenas chego tarde às conversas, mas parece que não tenho a inteligência social para me moldar às conversas dos outros. Anteontem, estava tão impaciente, num ambiente estranho para mim, que fui de uma brutalidade extrema com uma pessoa. Depois, nem lhe pedi desculpa. Os que me conhecem sabem que posso ser invulgarmente bruto numa banal troca de impressões. Como se aquilo que quero verdadeiramente dizer não seja formulado da maneira que pretendia, como se houvesse uma máquina na minha mente que muda todo o sentido das frases pensadas, por causa da urgência, por não haver tempo para fluir o raciocínio inicial e ser necessário entrar num programa acelerado, mais de combate do que de descontraído diálogo. E, claro, o programa transforma num turbilhão confuso o que, no meu pensamento, parecia estruturado. Enfim, há muitas conversas onde não acerto uma. Algumas pessoas pensam que é arrogância, mas é falha de outra natureza.
Por isso, muitas vezes, prefiro ficar calado e sonhar com o que diria, se as circunstâncias me permitissem. É engraçado como no silêncio todos os discursos se tornam tão perfeitos.
Na imaginação, sou um grande orador. Se estiver sozinho, sem medo, posso declamar um poema. Não me embrulho nas sílabas e o vocabulário expande-se, como que por milagre. Os erros gramaticais dissipam-se (é curioso como, em conversa, cometo tantos erros gramaticais, sobretudo quando me enervo).
E, agora, reparo: escrevi uma crónica confessional. O que querem as pessoas saber destes receios absolutamente individuais? E, tendo estado toda a tarde a meditar sobre outros assuntos, de como o mundo contemporâneo é demasiado explícito, virado para prazeres do indivíduo, esquecido da solidariedade, muito técnico e superficial, feito de fogo-de-artifício e luzes de néon, é curioso que me tenha saído esta crónica meio atabalhoada e cheia de autocomiseração, sem nenhum tema que se veja, sem uma palavra sobre os assuntos que afligem os nossos contemporâneos e que, afinal, já foram devidamente dissecados por toda a gente desta imensa conversa, a blogosfera, onde chego sistematicamente atrasado.

Uma palavra sobre a ilustração: foi tirada do filme "O Homem que Matou Liberty Valance", de John Ford, que devia ser o tema desta crónica. Como não consegui escrever sobre o filme, e na medida em que as ideias são como as cerejas, lembrei-me da importância da palavra nesta obra-prima do cinema, pois o bruto é vencido também pela força dos argumentos retóricos, que funcionam na sua qualidade de rolo compressor da História. O filme fala de um problema muito contemporâneo: a incerteza sobre o que é a verdade. Lembram-se do famoso "print the legend" que tanto nos explica sobre aquilo que nos rodeia?

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domingo, setembro 09, 2007

As emoções básicas (crónica) XII




Os derrotados da história

No meu habitual passeio pela blogosfera, deparei com uma estranha discussão entre dois indivíduos. No seu Arrastão, Daniel Oliveira, comentava um comentário de Blasfémias nos tradicionais termos contundentes. Fui ler o que os liberais tinham escrito e deparei com um texto de JCD sobre a Festa do Avante, onde teria sido celebrado o 90º aniversário da Revolução de Outubro, a da Rússia de 1917. "É angustiante ver toda aquela gente, na Festa do Avante, comemorar os 90 anos de uma das maiores tragédias da humanidade", escrevia JCD. Seguia-se um parágrafo mais explicativo da "tragédia", com o seu rol de mortos e, à frente, a seguinte frase, bastante retórica, que indignara Daniel Oliveira: "não seria muito diferente celebrar a peste negra, o holocausto, o último tsunami ou a SIDA".
O autor de Arrastão respondia com uma tirada dramática: "o grande problema dos que se julgam no lugar certo da história, sejam eles comunistas ou liberais, é que rapidamente se deixam de dar ao trabalho de pensar. Não é que não consigam, apenas ninguém lhes exige esse esforço quando falam dos derrotados".
JCD ficou-se a rir e eu fiquei fascinado com esta última frase. Para Daniel Oliveira, as pessoas que celebram a revolução de Outubro, o leninismo, são os derrotados da história. Daniel podia ter demolido a fraqueza das comparações de JCD como quem acalma leões, mas saiu-lhe assim. É que não faz sentido comparar Revolução de Outubro com peste negra. A coisa ainda passava se fosse com a revolução francesa. Podia ter escrito: "não seria muito diferente do que celebrar a revolução francesa", mas não o fez, apesar da comparação ser possível, com o rol de mortos, de injustiças e guerra civil, apesar de tudo numa escala mais modesta. Será que JCD se angustia todos os 14 de Julho?
Digo isto por estar fascinado com o uso da palavra "angustiante" por JCD, na primeira frase do seu post: "É angustiante ver toda aquela gente a comemorar os 90 anos...". As religiões mataram incontáveis vítimas e todos os dias são celebradas em cerimónias públicas. Acontece em todo o mundo, e JCD deve andar muito deprimido. Um pequeno exemplo: os cristãos falharam de forma clamorosa na protecção dos judeus europeus, nos anos 30 e 40; o Papa até pediu anteontem desculpa, embora sem se colocar no lado dos derrotados da história; o cristianismo cometeu outros crimes, da Inquisição à conversão forçada de milhões de pessoas; o mesmo se pode dizer de outras religiões; mas talvez isto tenha mais a ver com pessoas do que com ideologias, embora eu não esteja certo de que JCD concorde comigo.
A revolução de Outubro não foi exactamente uma peste negra, ou um tsunami, pois não teve nada de catástrofe natural. Foi uma catástrofe provocada pelo Homem, por homens de uma determinada época, com as motivações do seu tempo. É o que acontece na construção de qualquer beco sem saída. Ao longo da história, houve sociedades, civilizações inteiras, que se suicidaram. As provas são mais ténues, mas sabe-se hoje que os Maias viviam em constante conflito interno, com devastações regulares de cidades-Estado rivais. Alguns arqueólogos pensam que o colapso desta civilização se deve a algum azar, mas sobretudo a problemas ecológicos graves, devido ao excesso de uso de recursos escassos. De qualquer forma, tratava-se de um cultura violenta, com uma religião que praticava sacrifícios humanos.
Será que JCD se teria angustiado, ao ver-me a escalar pirâmides maias, boquiaberto com a sua magnificência?
Neste género de texto, os factos são como as cerejas e, de súbito, lembrei-me de um pequeno crime da minha autoria. (Não, não vos vou contar uma história policial passada nas ruínas de uma cidade maia)...
Em Chichen Itzá, decidi (mal) saltar um muro que me pareceu sólido, mas aquilo era tão frágil que, com o (enorme) peso do meu corpo, se soltou uma pedra. Para meu horror, vi a ancestral relíquia rolar pela relva. Em pânico, peguei naquele frágil testemunho do passado (que pesava um horror) e tentei colocá-lo de novo no muro, mas a construção ainda era bastante alta e não tive força. Estava calor, confesso que fiquei enervado. Olhei para um lado e outro e (cobarde) deixei a pedra onde ela tinha caído, a dois metros do sítio onde mil anos a tinham deixado, até ao meu inqualificável acto de vandalismo.
Ajudei, pois, a arruinar uma pérola do património mundial, como um qualquer turista americano.
Ah! Felizmente, os guardas eram todos maias, portanto, derrotados da história.
Na vergonhosa fuga ainda vi pessoas a celebrarem uma espécie de religião inventada, na escadaria da pirâmide principal, vestidas com roupas pós-modernas. A cerimónia incluía umas rezas, murmuradas de frente para o sol, que desmaiava no final de tarde. Os celebrantes estavam de braços abertos, ar compenetrado de quem fala com deuses apenas adormecidos.
Os pós-modernos ignoraram-me tanto como os guardas. Eu sentia a culpa de ter transformado em ruínas uma sábia cultura antiga, mas confiei no lusco-fusco. O céu estava cheio de nuvens coloridas e a grande pirâmide parecia feita de ouro, banhada pela luz exuberante, que se retirava no horizonte. Foi uma visão breve. Depois, a montanha de pedra tombou na escuridão da noite...

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quarta-feira, setembro 05, 2007

As Emoções Básicas (crónica) XI



Os Livros e a vida


Segue na blogosfera um interessantíssimo debate sobre literatura, baseado numa corrente onde cada bloguer elabora uma lista de livros que não mudaram a sua vida. Peço a vossa atenção, não apenas para a lista do Pedro Correia, um pouco mais abaixo neste blogue, mas para os interessantíssimos textos que Francisco José Viegas, Carla Quevedo e Luís Mourão, entre outros, já publicaram sobre o tema.
Esta crónica não surge como comentário à iniciativa, mas a diversidade das listas e, sobretudo, a sua pequenez, surpreendeu-me e suscita esta observação:
No início do século XX, os europeus burgueses e cultos liam todos mais ou menos as mesmas coisas. Se fossem ricos, teriam uma excelente biblioteca, com 6 ou 7 mil volumes, incluindo clássicos romanos e gregos, romance francês e russo, muitos autores alemães, italianos e ingleses. Uma boa biblioteca teria poesia, pequena novela, o essencial da literatura dos respectivos países; os nomes seriam quase sempre idênticos. Poderíamos viajar por toda a Europa civilizada e as bibliotecas seriam parecidas, à excepção da parte de autores nacionais.
Isto, claro, já não é assim. As pessoas cultas lêem livros diferentes. Suponho que a maior razão para a diversidade tenha a ver com a quantidade de livros que a civilização contemporânea produz. Cito de cor, mas havia uma notícia recente sobre alguém que se deu ao trabalho de fazer as contas: este ano, serão editados tantos livros como na década de 80, um número idêntico ao do século XIX, a mesma quantidade que foi produzida entre o ano 1000 e o ano 1700.
O fenómeno da aceleração não é exclusivo da literatura, aplica-se a todas as áreas do pensamento. Há milhões de cientistas no mundo e certamente milhares a estudarem ao mesmo tempo os mesmos detalhes de especialidades absolutamente incompreensíveis para a restante humanidade.
Na arte, acho que este fenómeno produz uma sensação de que ninguém é verdadeiramente culto. É impossível ler tudo. Não há tempo suficiente. Somos massacrados com imagens, espectáculos, cultura popular, banalidades. Dispersamo-nos em jogos, trabalhos complexos, múltiplas actividades.
Por isso, qualquer cânone literário sugerido terá sempre importantes lacunas, pois também os clássicos aceleram: há mais nomes, mais obras imortais.
Existe outro problema: nas esponjas em que se transformaram os nossos pobres cérebros, não há tempo para absorver as culminações da arte ocidental. Uma pessoa que tenha ouvido menos de cinco vezes a Paixão Segundo São Mateus compreende verdadeiramente a sua profundidade? E Guerra e Paz, quantas vezes é preciso ler?
No fundo, quero dizer que tudo se tornou um pouco arbitrário; e o nosso gosto, uma defesa contra a enxurrada de estímulos, funciona como um cone que está à nossa frente e nos impede de procurar outras sensações. Não há tempo para explorar novas propostas, prometemos para outra ocasião, adiamos.
Por vezes, temos sorte, encontramos por acidente uma obra de arte que nos encanta.
Digo isto por ter chegado de férias com o papo cheio. Tive a sorte de ver uma exposição de gravuras de Francisco Goya.
Eram demasiadas, claro, e tinha pouco tempo para as ver. Memorizei o possível, observei atentamente cada gravura, percorri as salas com disciplina, tentando esvaziar a cabeça de outras questões, concentrado naquilo que via.
E, passadas umas semanas, sinto que o essencial de Goya me escapou, que as mensagens do autor estão perdidas algures na minha memória incompetente e traiçoeira, na minha cultura cada vez mais incompleta.
Como admiro aqueles cavalheiros antigos que podiam dissertar com os amigos sobre as órbitas mais altas do seu mundo intelectual, bebendo o seu brandy enquanto jogavam xadrez junto a desempoeiradas e gigantescas bibliotecas. Era um universo previsível e sensato, onde o tempo valia. Que inveja! Eu, contemporânea barata tonta, ando a saltitar de sensação em sensação, num nevoeiro de drogado. Para mim, o tempo cavalga e corre, literalmente.

ilustração: pintura de Jan Vermeulen, séc. XVII

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quarta-feira, julho 25, 2007

As Emoções Básicas (crónica) X


O sonho
Vivemos num tempo estranho, quando a única época em que as nossas mentes descansam se chama silly season, a época tola. Podemos preguiçar, esticar os braços, contemplar o que é belo, sem nos preocuparmos com as coisas "importantes" que habitualmente nos ocupam: a medíocre política, o trabalho insano, a competição inútil e as riquezas materiais.
(Numa história taoísta, um homem muito pobre que procurava ouro ia a caminhar no meio de uma rua cheia de gente; ao ver passar alguém que transportava um saco de ouro, correu para roubar o saco, mas foi apanhado pela multidão; o juiz perguntou-lhe 'como pudeste ser tão inábil, roubar à vista de tanta gente’; e o homem respondeu que não vira a multidão, só conseguira ver o ouro).
...Parecemos às vezes este homem que só conseguia ver o ouro. Corremos atrás de algo que nos foge sempre e que não nos satisfaz, por ser sempre tão escasso, algo que apenas brilha, um brilho frio e distante...
Não pensem que esta é uma crónica moralista, não venho dar lições que não posso dar. Queria escrever sobre a tristeza, sobre a nostalgia, mas está um dia solar e vivemos na silly season. Esta é uma crónica sobre a ausência de tema, sobre a futilidade, sobre o tempo que passa, sobre o sonho.
Na minha preguiça, estava a ler uma história da antiga sabedoria chinesa, um pequeno texto chamado "sonhos", de um mestre taoísta Lieh-Tzu que terá vivido no quarto século antes de Cristo, ou talvez não, (talvez tudo isto seja um devaneio), tal como era um sonho o que sentia o rei Mu, governante da terra de Chou, que mandou construir um grande palácio em honra de um mágico que podia atravessar fogo e água, metal e pedra, que podia voar e acalmar as inquietações humanas.
E nesse palácio o rei reuniu as melhores concubinas e mandou fazer os melhores repastos, mas o mágico nunca se contentava. E, um dia, o mágico levou o rei a voar muito acima das nuvens e os dois chegaram a um palácio esplendoroso, que era o palácio do mestre mágico, e o palácio terreno deixou de fazer sentido, pois não passava de uma miserável cabana, em comparação. E, depois, o mágico levou o rei de Mu a viajar até um local muito escuro, o sítio do grande abismo, e deixou-o cair... Foi então que o rei acordou. Perguntou às pessoas à sua volta o que acontecera e disseram-lhe que estivera sempre no mesmo sítio e que passara pouco tempo. E o mágico explicou-lhe que ambos os palácios eram irreais. E este magnífico texto, que aqui tento resumir sem habilidade, termina assim: "Sem sairmos de portas, podemos conhecer o mundo inteiro; sem olharmos pela janela, podemos ver o caminho do céu; quanto mais longe viajarmos, menos poderemos saber".
Acho que esta história chinesa se aplica à ânsia ocidental: na busca incessante da felicidade, acabamos por não encontrar coisa alguma; e perdemos a noção dos pequenos sonhos, dos ínfimos prazeres, que estão ali, ao pé de nós, à mão de semear.
É por isso que a época do descanso e da preguiça (quando temos tempo para pensar dentro de nós) nos parece tola, mas isso é erro nosso, ilusão e devaneio.


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terça-feira, julho 24, 2007

As Emoções Básicas (crónica) IX

A visita



O primeiro-ministro estava com grande dor de cabeça. Ninguém vira a sua queda, na véspera, nos jardins de São Bento. Batera com a nuca e estava com amnésia, mas o governante decidiu mesmo assim prosseguir com a visita à escola.
Impecável. Excelentes instalações. E ficou impressionado com as respostas prontas dos meninos e das meninas.
- Estamos a produzir crianças cada vez mais inteligentes, disse o primeiro-ministro, para aprovação geral das professoras e dos jornalistas. A ministra concordou, lançando-se de imediato num erudito monólogo, que todos aplaudiram no final.
O primeiro-ministro estranhou que as crianças aplaudissem. Estavam todas tão limpinhas, tão interessadas nos novos computadores da escola.
- O plano tecnológico está a funcionar às mil maravilhas, afirmou a ministra, como se lesse os pensamentos do líder.
Foi então que o primeiro-ministro notou, com estranheza, a extraordinária beleza de todas as professoras. Pareciam saídas de páginas de revista. Os jornalistas também pareciam invulgarmente sofisticados. E, na rua, militantes do partido agitavam bandeiras, sem grande convicção, e gritavam vivas.
Intrigado com aquilo, no final da visita, já dentro do BMW oficial, o primeiro-ministro decidiu interrogar o seu assessor.
- Achei aquelas crianças demasiado...como posso dizer?...demasiado perfeitas. Como é que isso se explica?
- Eram actores, senhor primeiro-ministro.
- Não compreendo...
- As crianças foram contratadas por uma agência de casting.
- E as professoras eram demasiado bonitas...
- Todas top model. Nestas ocasiões, procuramos sempre o melhor...
- E os jornalistas?
- Actores profissionais. Do Dona Maria, sobretudo, mas veio um cantor do São Carlos, aquele que lhe fez uma pergunta a cantar...
- Achei estranho.
- As perguntas são todas estudadas e preferimos actores com experiência.
- Mas, e a ministra?
- A agência de comunicação também tratou disso.
- E os militantes?
- Pagos à hora. Vieram numa excursão.
- Bem, e você?
- Fui contratado na semana passada, não se lembra? Antes, fiz aquele anúncio da Coca-Cola...
O primeiro-ministro avançou para o lugar da frente e, alarmado, ordenou ao motorista:
- A toda a velocidade, leve-me para o hospital mais próximo. Esta amnésia pode ser perigosa...
O motorista olhou para trás, desconsolado:
- Eu não sei conduzir, senhor primeiro-ministro. Sou actor de cinema e disseram-me para me sentar aqui. E é tudo o que sei fazer.

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As Emoções Básicas (crónica) VIII

Escaqueirar Cartago

Odeio polémicas á portuguesa, pois parece que quem fala mais alto é quem tem sempre razão. Depois, os argumentos são como as cerejas, vem sempre uma atrás da outra e, quando damos por nós, engolimos o cesto todo, o prato está cheio de caroços e a barriga perigosamente farta.
Vem isto a propósito de uma alegada polémica com Pedro Sales, de Zero de Conduta, que viu grande indignação no meu texto sobre a apreensão de uma revista satírica que insultava o príncipe herdeiro espanhol. E, vai daí, já estou metido num tema de capa e espada, com argumentação monárquica à mistura e gritos de Delenda est Cartago.
Repito: na minha modesta opinião, a liberdade de expressão não é um direito absoluto e não está acima da liberdade de ninguém, seja ele príncipe ou plebeu.
É apenas isto, meu caro Pedro Sales, que escrevo naquela crónica. É uma opinião que tenho há muito tempo. Julgo que, infelizmente, o exercício da liberdade de expressão é um poder a que nem todos têm acesso e, por isso, não se trata exactamente de um direito (ou apenas de um direito), mas sobretudo de uma responsabilidade. Ou seja, a quem o exerce exige-se que cumpra o seu dever.
As polémicas blogosféricas são interessantes porque as pessoas gostam de ter sempre razão e, acima de tudo, porque a leitura dos supostos adversários é muito ligeira, aflorando vagamente o que está efectivamente escrito. É como quem visita o museu de ciência natural. O Luís Naves escreve isto, ergo, deve ser uma criatura assado.
Penso que o método dedutivo não será o mais correcto, pois faz lembrar aqueles cientistas que analisam as partes do elefante: um deles descobre a tromba e conclui que se trata de uma serpente; outro, a pata, por isso não duvida de que se trata de uma árvore; o terceiro investiga a cauda e determina que estamos perante um cão.
No fim do percurso, fico colado a uma polémica sobre homossexualidade (juro que nem percebi bem, apesar de ter lido várias vezes para tentar descodificar). Trata-se de um assunto sobre o qual não tenho nenhuma opinião estruturada ou que valha a pena partilhar com leitores.
Serve afinal esta crónica para deixar claro que não me agradam muito estas polémicas à portuguesa, devido ao ruído e ao facto de se discutir sobretudo a espuma das causas e nunca a sua essência.
Aqui, o que me incomoda é a leveza dos argumentos. Imagine o Pedro que o expunham publicamente num enxovalho daqueles, para mais humilhada também uma pessoa amada. Não sentiria indignação? Acha que isto é apenas uma questão de republicanos ou monárquicos? Ou uma simples equação sobre os limites da liberdade de expressão?

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segunda-feira, julho 23, 2007

As Emoções Básicas (crónica) VII


A caricatura

O João Távora já mencionou aqui o tema da caricatura “infame” do príncipe herdeiro espanhol, desenho que um juiz mandou apreender. Concordo com aquilo que o João escreveu e com o uso da palavra “infame” para descrever os desenhos e a inqualificável intrusão no espaço privado das vítimas.
Para alguns comentadores, a liberdade de expressão é o direito mais importante que existe. Estas pessoas usam geralmente um argumento curioso, segundo o qual a decisão do juiz de apreender a revista satírica é errada e um inqualificável atentado à humanidade e arredores. Porque, segundo estas opiniões, dizer mal dos poderes, de todos os poderes, é a questão essencial.
Claro que estes opinadores não pensam na liberdade do príncipe. Na liberdade de poder partir o focinho ao engraçado que o desenhou a ele (Felipe) e à sua esposa, numa circunstância que qualquer um de nós acharia “infame”, se fosse connosco. Aliás, os comentadores nunca pensam: “e se fosse comigo e com aqueles que eu amo?”
Falo por mim: teria muita vontade de partir o focinho ao estúpido.
É engraçado que este debate surja num país onde o respeitinho sempre foi o mais importante. Claro que os que defendem a liberdade de expressão como direito absoluto (e cimeiro) logo viram o bico ao prego, afirmando que a decisão judicial é errada pois devia prevalecer o direito de criticar ou dizer mal dos poderosos.
Tenho aversão aos argumentos geralmente usados neste tipo de debate, pois ficam sempre ao lado do essencial. Se a liberdade, incluindo a de expressão, fosse um direito absoluto, existia uma espécie de lei da selva, que é o mesmo que dizer a lei do mais forte e do mais poderoso. Felipe teria de partir o focinho ao cómico, algo que não precisa de fazer porque há tribunais e juizes que defendem a intimidade do príncipe, com as respectivas decisões judiciais.
Ninguém tem o direito de violar o meu espaço íntimo. A minha liberdade é tão sagrada como a liberdade de outra pessoa qualquer, independentemente da posição que cada um de nós ocupa na escala do poder.
Da mesma forma, ninguém tem o direito de violar o espaço íntimo do príncipe, pois isso será uma redução inqualificável da sua liberdade. Felipe é poderoso? Sim. Deve ser transformado em vítima por isso? É evidente que não.
Isto vai sempre dar ao mesmo: a liberdade de expressão não é apenas um direito e, sobretudo, não é um direito absoluto. É acima de tudo um poder e uma responsabilidade.

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domingo, julho 08, 2007

As Emoções Básicas (Crónica) VI


A Europa

(Aviso: quem não tiver pachorra para 800 palavras, siga para um blogue ao lado)
Duas semanas passadas sobre um acordo importante e a uma semana decorrida de presidência portuguesa da UE, muito se tem escrito sobre Europa. Os textos que li eram sobretudo de dois tipos: de um lado, estavam os defensores do futuro tratado europeu e críticos do referendo; do outro, os críticos do tratado e defensores do referendo.
Há evidentemente muitas matizes nos argumentos, mas o primeiro grupo acha que são muito substanciais as alterações ao Tratado Constitucional (TC, para quem não se recorda, texto chumbado pelos franceses e holandeses), o que justifica não haver a consulta popular que tinha sido prometida para o falecido documento; o segundo grupo lembra que o povo deve ser consultado por uma questão de democracia, afirma que não existe debate e lamenta o conluio dos chefes de governo numa decisão não-democrática.
Este é um tema muito difícil de abordar, na medida em que as duas teses ocuparam todo o espaço de reflexão. O ruído é tão intenso, que parece impossível explicar que ambos os lados da barricada imaginária têm razão e, paradoxalmente, estão desprovidos dela.
O ponto que não vi referido em lado algum (não tendo lido tudo, peço antecipadamente desculpa a algum autor que o tenha afirmado) é algo de muito simples: não há nenhum chefe de Governo que não deseje o novo tratado. Nem sequer os gémeos polacos, ao contrário do mito que se tenta impingir. Os líderes eleitos são todos pró-tratado.
Há um aspecto pouco compreendido sobre a União Europeia que convém reter: o conselho europeu é, de longe, o órgão mais importante da UE.
Se fizermos o exercício de comparar o sistema europeu ao americano, verificamos isso mesmo. O tribunal de justiça tem muito menos influência do que o supremo, com decisões importantes de cinco em cinco anos; nos EUA, o órgão mais relevante é a presidência, que não existe na Europa; o chefe de Estado forma um Governo, que é infinitamente mais poderoso do que o seu quase equivalente europeu, a comissão, que no fundo é uma entidade ao serviço do conselho e do Parlamento; a câmara baixa do congresso americano tem um poder vastamente superior ao do Parlamento europeu; mas as coisas invertem-se na câmara alta: o senado é menos influente no sistema do que o seu equivalente europeu, o conselho. Basta uma visita a um conselho para perceber isto: na política europeia, aquela é a entidade decisiva.
Ora, não há um único primeiro-ministro que não queira o novo tratado. Isto já era assim há dois anos, quando os chefes de governo eram quase todos diferentes; houve eleições, mudaram os responsáveis, mas a política é a mesma. Há dois anos, quando foi aprovado o TC, um terço do conselho europeu era diferente do actual. A senhora Merkel tinha acabado de chegar. Quem assinou por Portugal foi Santana Lopes, mas quem lançou a negociação, do lado português, foi o governo de Durão Barroso. E, no entanto, o novo tratado será praticamente igual ao que foi chumbado pelos franceses.
[Não consigo evitar um tema que me faz urticária, quando ouço os críticos do novo tratado dizer que esta é uma questão democrática e que "os povos rejeitaram" o tratado. Alguém me explica por que razão os franceses têm de decidir pelos portugueses e, aliás, por todos os outros?]
Esta crónica vai longa e estará certamente a provocar nos leitores alguma perplexidade. Sempre fui contra o referendo, por saber que ninguém iria discutir o tratado. Acho que a palhaçada da democracia, o seu simulacro, é algo de perigoso, que abre caminho ao populismo.
Na realidade, a decisão de Bruxelas, há duas semanas, não é anti-democrática, mas resulta de uma negociação que dura há cinco anos, com dois anos de suspensão. Estão envolvidos 27 países e, talvez, mais de 40 primeiros-ministros. Não me atrevo a calcular o número de partidos que participaram.
À presidência portuguesa cabe concluir o novo tratado reformador. Há políticos que exigem referendar esse tratado de Lisboa, embora não expliquem o que faríamos se a resposta fosse não. Levantam os braços, enrolam os olhos, como se a questão fosse espúria, e depois atiram um "logo se vê, o importante é dar voz aos povos", como se os povos não se tivessem pronunciado.
Li muitos comentários, sobretudo em blogues, onde surge o vago argumento anti-europeu, no fundo, o instinto essencial da nossa elite, que sempre teve aversão à Europa. No género, estão-nos a enganar, isto é uma choldra; mas mais subtil, onde se insinua que podia ser uma boa oportunidade para dizermos não a esta certa Europa dirigida por directório dos poderosos e onde os "povos" nunca têm a palavra, pois o poder vem de cima para baixo, e etc.
Apetece dizer que isto ainda vai acabar mal. Um dos lados tenta afirmar o indefensável, de que TR não é a continuidade de TC; o outro lado parece não compreender que o destino de Portugal está intimamente ligado ao futuro dessa estranha entidade chamada União Europeia, onde tudo é negociação e acordo. É complicado, sim. Mas não há volta a dar. Teremos isso ou o regresso ao passado.

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sexta-feira, julho 06, 2007

As emoções básicas (crónica) V



De como gostamos da violência
De onde vem a raiva contemporânea, essa intensa ira que nos corrói? Toda a cultura popular é feita de imagens de extrema agressão; a informação, o entretenimento, o que nos chega pelos espelhos que nos rodeiam, tudo é feito de grotesco, desumano e distorcido.
Seja qual for a comparação, os contemporâneos vivem melhor do que nunca. Viajamos, temos acesso a um bem-estar jamais visto, a confortos que no passado pertenciam apenas aos poderosos. E, no entanto, quase ninguém parece satisfeito, como se toda a gente fosse insaciável, todos ao mesmo tempo.
Confesso que me confunde, esta insatisfação quase revoltada. Há quem explique a ira contemporânea pela vaidade intranquila, a perturbação de ver os outros subir na vida. Seria, pois, a inveja a dominar o nosso mundo.
Mas a explicação não me parece suficiente para se compreender a inundação de imagens de extrema violência.
Abro a televisão e ali passam resumos de filmes: são extractos breves do essencial, uma sequência rápida de efeitos especiais onde se podem ver pessoas a ser desfeitas, pedaço a pedaço, com volúpia...
Ainda não tinha visto um filme muito popular há dois anos: A Guerra dos Mundos, de Steven Spielberg, baseado em H. G. Wells. Gosto muito do livro original e também gostei de um filme dos anos 50 em que a invasão marciana era uma espécie de metáfora do seu tempo da guerra fria (os americanos eram pacíficos, quase ingénuos, bonzinhos e inocentes). Na nova versão (que vi um dia destes) para meu espanto, Spielberg corta Wells às postas e faz do original gato-sapato. O filme é uma xaropada sentimental sobre um mau pai que protege as suas irritantes criancinhas, as quais guincham histericamente todo o filme, enquanto o absurdo progenitor anda de um lado para o outro a atropelar refugiados como ele. Torci pelos invasores. Na versão de 50, os americanos ajudam-se uns aos outros, estão do mesmo lado, querem defender o seu país. Na versão pós-11 de Setembro, é cada um por si. Tom Cruise chega a matar um homem que lhe salvara a vida.
De onde nos vem esta raiva? É este um sinal de algo mais fundo?
A TV passa uma genial série, Roma, onde a violência está de tal modo integrada na história, que faz sentido. Acho que a série tem um argumento impressionante, muitíssimo bem feito, com personagens desenhadas ao pormenor, de enorme riqueza de nuances psicológicas. Mas o que me fascina, nesta série de TV, é a forma como os argumentistas falam de nós, parecendo que nos contam uma história sobre o fim da república romana e a guerra civil que levará ao império. (Não posso deixar de referir a excelência deste programa, dos actores à realização, passando pelo texto, os figurinos, gráficos ou fotografia).
O fundo histórico é um pretexto (e nem me refiro aos erros). O que é ali importante é a exibição da ira contemporânea, cuja origem não é de todo clara.
Não assenta na divisão em classes, pois todas as classes a possuem na mesma proporção. Não é o hedonismo dos ricos, pois também os miseráveis são cruéis. Não tem a ver com a natureza humana, pois tanto os bons e inocentes, como os maus e hipócritas, adoram a violência e vivem na violência.
Mas atravessa toda aquela história um lugar comum da ira: a ausência de valores. O único verdadeiro idealista, o judeu Timão, após uma carreira de matança insensata, tenta libertar-se do horror, mas tragicamente sem o conseguir. É o único que o tenta fazer, nesta história sobre o poder e a traição, sobre ambições sem limites e o elaborado acaso. Roma é um espelho do mundo contemporâneo, que também se debate numa espécie de guerra civil: vive numa crise insondável, com nostalgia de um passado feito de heróis destemidos e honrados. Um passado inatingível. É um mundo sem esperança, que desconhece ainda estar a criar a sua própria destruição.

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domingo, junho 17, 2007

As emoções básicas (crónica) IV


A sombrinha
Tenho um calendário na parede em frente à minha mesa de trabalho. Inclui detalhes de pinturas do Museu do Prado, uma obra por mês; e, no mês de Junho aparece esta imagem. Chama-se El Quitasol, foi pintado por Francisco Goya, com data de 1777. Um rapaz segura a sombrinha (tem o outro braço dobrado, parece-me que será demasiado comprido, ou o cotovelo excessivamente puxado para a direita, talvez por ser um adolescente ainda com o corpo desproporcionado); a pintura é dominada pela figura de uma jovem (também adolescente); ela tem a cabeça protegida pela sombra do guarda-sol, enfeites no cabelo, brincos brancos, um vestido elegante, azul, uma capa de bom tecido, de onde sai o seu braço, que segura um leque; e, ao colo, dorme um cãozinho, cujos contornos são confusos; talvez o animal tenha uma fita vermelha à volta do pescoço. O jogo de luz, na cara da rapariga, é espantoso. E, depois, há um sorriso...
Na minha parede, no calendário, a imagem é quadrada, limitada ao centro da pintura. Não se percebe bem o que está no fundo. Seria preciso ver a obra original para deslindar todos os detalhes. Lembro-me dela, no andar de topo do museu: é grande, pelo menos um metro e meio de comprido e mais de um metro de altura. Mas quando a vi, estava cansado, já não me recordo exactamente dos pormenores...
(É o grande defeito dos museus bons: queremos ver tudo e acabamos por não ver nada; a mente humana não aguenta mais de cem imagens de cada vez; os museus devem ser vistos durante vários dias, 20 ou 30 pinturas em cada visita).
Não sou historiador de arte e o que me leva a escrever sobre a sombrinha não é a pintura em si, mas o fascínio que ela me tem provocado, nestes 17 dias em que está ali, à minha frente.
O que me ocorre, quando olho a imagem, é a ideia de um mundo que já não existe, luminoso e solar, com uma alegria interna e leve que nos surpreende.
A imagem fascina porque vivemos num mundo cheio de sombras, de cores esbatidas, um pouco nocturno...
(Vivemos rodeados de imagens banais, de tal maneira que mal paramos para desvendar os seus enigmas. Não me estou a esquecer do estilo das cores da publicidade ou da beleza fria da national geographic; mas reparem que essas imagens pertencem a universos que visitamos apenas virtualmente, em papel de 80 gramas; podiam ser de Marte)...
Talvez por isso nos escape, ou encante, esta pintura: a sua alma, a graciosa leveza. As figuras enviam um sorriso de um mundo que já não existe. Mas o que me choca é que o pintor não sabe, as personagens ainda não sabem, mas este mundo feliz deixará de existir ainda em vida destas pessoas autênticas.
A luz evanescente que se espalha de forma desigual; o vestido azul, cujas pregas reflectem o sol dourado; o sono tranquilo e sonhador do cãozinho; e a paciência (talvez apaixonada) do rapaz que segura a sombrinha.
Dentro de uma geração, tudo isto será apenas uma memória, pois uma terrível guerra vai mudar a vida de toda a gente. O pintor sofrerá muitos horrores; e a Espanha, invadida, massacrada, entrará nas trevas.
El Quitasol está longe de ser a melhor pintura de Goya: é uma obra de juventude, que não se compara ao poder trágico dos Fuzilamentos de 3 de Maio, ao erotismo da Maja e aos geniais Pinturas Negras e Desastres de Guerra (que parecem um século à frente do seu tempo).
Esta sombrinha é apenas uma imagem sobre a surpresa, a alegria de viver, ou antes, a esperança da vida futura. E, sabendo nós o que não se encontra nas suas pinceladas, mas que foi captado na essência, há como que uma antecipação da tragédia e da morte, um sorriso que inclui a futura tristeza, e a nostalgia do que inevitavelmente está condenado.

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sábado, junho 16, 2007

As emoções básicas (crónica) III


No magnífico IX jantar do Corta-Fitas, ontem realizado, um dos tópicos de conversação foi a questão direita-esquerda. Embora nenhuma afirmação parecesse controversa, acho que este é um bom mote para uma crónica sobre a aversão entre as duas tribos.
As pessoas gostam de rótulos e por vezes fascinam-se demasiado com as ordens taxionómicas que inventam. Devia ter dito naquele jantar que não acredito na existência de divisões claras entre direita e esquerda, que isso já não serve para representar a realidade que nos rodeia e que apenas no passado encontramos a clivagem.
(mas sofro da síndroma da escada, que surge naquelas ocasiões embaraçosas e inesperadas, quando descemos a escada do prédio e encontramos um vizinho, primeiro o cumprimento mais ou menos afável, mas de súbito já vamos a descer o patamar, lembramo-nos de um assunto importante, o vizinho subiu um lanço de escadas e nós descemos dois, e ficamos a discutir o assunto a uma distância que nos obriga a gritar).
Os que se afirmam de esquerda são, tantas vezes, os mais conservadores.
(veja-se a recente polémica entre João Távora e Daniel Oliveira, neste blogue. O esquerdista escreveu que os monárquicos militantes são patéticos; sem notar que a sua posição, que impedia à partida qualquer discussão sobre o regime político, era ultra-conservadora).
A Europa mudou muito e por vezes parece-me que as pessoas não avaliam até que ponto isso é um facto. Uma das chaves para compreender esta realidade é a palavra convergência. Ela tem sido usada num aspecto algo limitado e burocrático: a convergência real dos rendimentos per capita medidos em paridades de poder de compra. Em resumo, as políticas europeias criaram um mercado único com liberdade de circulação de pessoas, bens e capitais, visando obter um equilíbrio de rendimentos a nível europeu. Ao longo dos últimos 50 anos, a integração europeia criou um espaço de riqueza onde ocorreu também convergência real.
Dito assim, parece aborrecido. Mas a realidade é mais complexa. A convergência não é apenas de rendimento, mas verifica-se em quase todos os aspectos da sociedade: nos impostos, na mentalidade, na educação, nos sistemas de saúde, no trabalho, na microeconomia, na liberdade de imprensa, nos direitos dos cidadãos, e por aí fora.
(tudo por causa das salsichas)
A União Europeia
(a fábrica de salsichas)
produz dois terços da nossa legislação. Os parlamentos nacionais adoptam estas leis podendo alterar algumas dentro de certos parâmetros previstos no documento original; em certos casos, a adaptação é mínima. Este é um dos grandes segredos da UE, pois nenhum parlamento gosta de admitir que muito do que faz é adoptar o que outros fazem.
(a salsicha é apresentada como prato nacional; há quem ponha batatinhas, ou arrozinho, ou um fio de azeite, ou um bocadinho de massa; mas toda a gente come salsichas).
É por isto que tantos países querem aderir à União Europeia: ela fabrica as melhores leis do mundo.
Outro exemplo: ontem, ao escrever um artigo no meu jornal sobre um político belga, tive de mergulhar na complexidade da política belga.
O meu primeiro objectivo era perceber se o senhor era de direita ou de esquerda. À medida que li mais coisas, apercebi-me da complexidade da situação. Ele podia ser mais ou menos assimilado à direita (ou ao centro), mas poderia vir a integrar um governo de esquerda, pois era francófono e o partido flamengo da mesma cor perdera as eleições. Aquilo era mais parecido com questões clubísticas do que políticas. Para perceber as coligações belgas é necessário, no mínimo, tirar um mestrado em ciência política ou ser jornalista especializado em clubes de futebol. Mas a rotativa não podia esperar e eu lá escrevi o artigo, na minha ignorância, sem conseguir pôr um rótulo no senhor.
Acho que a convergência europeia, as políticas que todos têm de imitar (se não se imitar o vizinho, ficamos para trás na competição), mudaram muito este esquema simples da direita-esquerda, que nos era tão familiar e confortável.
A Europa é hoje um vasto espaço de classe média. Oito em cada dez europeus são pequeno-burgueses assumidos (como eu). Nas franjas, os muito ricos e os muito pobres. E só para eles há diferenças reais de política direita-esquerda. Para os ricos, a esquerda exige impostos acima de 50% e a direita abaixo de 50%. Em relação aos excluídos, o debate é se haverá caridade pública ou caridade privada. Pede-se, portanto, aos 80% do centro que votem e eles votam...no centro...que como toda a gente sabe, é um lugar que não existe.

A ilustração foi furtada na net e lamento a pirataria, mas é muito boa e não resisti

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sexta-feira, junho 08, 2007

As Emoções Básicas (crónicas) II



Para efeitos de imagem, o que ficará desta cimeira do G8 será, provavelmente, aquilo que não teve influência nem importância, o desespero dos radicais, cuja visão do mundo não faz qualquer sentido. Vimos as habituais piruetas para aparecerem nos telejornais e fotos, o vandalismo descerebrado. E, claro, no meio da espuma, escapou-nos o facto deste já ter sido, provavelmente, o G8 mais importante da última década. Hoje, os líderes vão comprometer-se a uma ajuda maciça a África, para combater a SIDA e a malária.
Em política, a emoção dominante costuma ser o medo. E, no caso do primeiro dia de cimeira, houve duas ameaças a comandar os resultados, embora parte do mérito pertença, sem dúvida, a Angela Merkel, que continua a surpreender toda a gente, a conseguir acordos que pareciam impossíveis, a levar a água ao seu moinho, com paciência e liderança.
As ameaças são o possível regresso de uma mini-Guerra Fria e a alteração do clima global. Ambas susceptíveis de porem em causa a sobrevivência da espécie.
O primeiro caso constituirá menos uma ameaça real e mais uma elaborada jogada de xadrez, com bluff à mistura. Em causa, está um escudo anti-míssil americano, colocado na Europa. O sistema enerva profundamente Moscovo, que corre o risco de ver o seu arsenal estratégico transformado num brinquedo inofensivo.
Nas duas últimas décadas, os EUA esforçaram-se por transformar a Rússia numa potência de segunda linha e, por vezes, até parece que gostariam de a transformar numa potência de terceira, ignorando os perigos de tal evolução (tecnologias perigosas à solta, espaços vazios e despovoados, territórios nas mãos de fundamentalistas, recursos económicos esbanjados). O escudo poderia ser um novo empurrão no sentido do declínio, mas os presidentes russo e americano terão conseguido (essa é a interpretação que se pode extrair das afirmações crípticas que fizeram) iniciar um diálogo que acabará com o conflito à nascença. Talvez os americanos precisem dos russos nesta fase do campeonato (por causa do Irão, do Kosovo, etc.).
O segundo problema é bem mais complexo. Há provas científicas sobre o aquecimento global (o recuo do gelo é evidente), mas não existe consenso sobre a extensão do efeito de estufa ou se temos apenas o efeito de estufa na história. O clima da Terra mudou muitas vezes e as razões não são conhecidas. Deve ser considerado outro factor: este é um problema tecnológico e, portanto, económico. Há também quem diga que já podíamos ter iniciado uma nova era glaciar (as civilizações humanas beneficiaram de uma larga extensão de bom tempo, superior à média histórica, talvez cinco mil anos a mais com clima favorável, o que lhes permitiu chegar a este patamar de desenvolvimento; e a sorte pode estar a acabar).
Enfim, o medo parece ser, neste caso, bom conselheiro. Os Estados Unidos aceitaram finalmente negociar com os europeus e japoneses um acordo que poderá levar a uma redução da emissão de gases com efeito de estufa. Há ainda muitos ses, mas parece ser um caminho possível, apesar de obrigar a adiar as grandes decisões (o próximo presidente americano que resolva a questão).
Finalmente, África, o continente perdido. A confirmar-se um acordo para financiar a luta contra terríveis doenças, será um resultado sem precedentes.
Em tudo isto, não se entende para que serviu a violência dos manifestantes. Não se destinava a fazer pressão para que houvesse um determinado acordo. A violência, neste tipo de cimeiras, visa perturbar o processo de decisões e, portanto, o seu único objectivo é que não haja entendimento entre os líderes dos países ricos, criando um clima de confronto político, de rejeição social e de isolamento económico.
Parece ser uma agenda aberrante e perigosa. Não se baseia no medo, não é racional nem possui qualquer intuito construtivo. Trata-se apenas da mais pura loucura.

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quinta-feira, junho 07, 2007

As Emoções Básicas (crónicas) I


O Olimpo

José Pacheco Pereira, autor do blogue Abrupto, escreveu recentemente um post onde zurzia a blogosfera por, na sua óptica, reproduzir os erros da imprensa e se estar a transformar num conjunto de tribos onde se trocam favores. Embora seja um dos portugueses com mais acesso a órgãos de comunicação, JPP escreve frequentemente com desprezo sobre estes. O autor é mesmo um dos raros portugueses com acesso a todas as formas de comunicação, dos livros à TV, passando pela blogosfera e a imprensa. É mérito seu. Confesso-me leitor assíduo do Abrupto e da generalidade do que JPP escreve em jornais. Acho que o autor tem uma rara lucidez e uma cultura fora de série. Muitas vezes concordo com aquilo que escreve, mas neste caso, discordo. Atrevo-me até a lançar aqui uma crítica, apesar de JPP ainda não ter terminado a sua argumentação.
Há uma diferença entre blogues e jornais. As pessoas pagam para ler jornais e ninguém dá dinheiro por um que não seja credível. Daí que o amiguismo não seja desejável, pois mina a credibilidade. Por outro lado, a blogosfera é um meio gratuito, não remunerado. Logo, trata-se de uma comunidade, não de um produto. Nas comunidades trocam-se cortesias e insultos. Há casamentos e ódios. Para além disso, este universo em expansão tem tribos e clãs: há antigos e recentes; literatos e políticos; homens e mulheres; colectivos e solitários. Se as pessoas não gostam, mudam de clã, ainda antes de mudarem de tribo.
Claro que existe amiguismo na blogosfera. É da sua natureza. A começar pela escolha dos blogues linkados, pelo que se gosta de ler noutros locais, pelas pessoas com quem se escreve no mesmo sítio. Existe a excepção dos bloggers que não têm links ou que nunca citam os outros, mas se todos fizessem assim, a blogosfera não existia e não era uma comunidade. Era um conjunto de colunistas famosos a escreverem num espaço virtual.
O autor afirma que a blogosfera está a perder qualidades, mas este argumento é um pouco difícil de compreender. Trata-se de uma visão subjectiva, enquanto não for explicada. Admito que para muitos utilizadores a blogosfera esteja a perder qualidades, mas talvez a melhor maneira de descrever o fenómeno seja dizer que ela cresce, que entram mais pessoas que não conhecemos, que ela evolui sem que a possamos controlar. Mas isso pode ser uma coisa boa.
Deixem-me voltar atrás. Há uns dias, num post que me fez torcer o nariz, JPP defendeu a sua tese de que só leria literatura com pelo menos dez anos de publicação. É engraçado defender estas coisas, mas é melhor que não haja muitos leitores a imitar a ideia, pois em breve não haveria literatura, nem com dez anos nem com um. Se as pessoas só comprassem livros com dez anos, as editoras iam à falência e, portanto, não editavam.
No fundo, nesta polémica, acho que é giro ser da elite e habitar na estratosfera.

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