domingo, setembro 09, 2007

As emoções básicas (crónica) XII




Os derrotados da história

No meu habitual passeio pela blogosfera, deparei com uma estranha discussão entre dois indivíduos. No seu Arrastão, Daniel Oliveira, comentava um comentário de Blasfémias nos tradicionais termos contundentes. Fui ler o que os liberais tinham escrito e deparei com um texto de JCD sobre a Festa do Avante, onde teria sido celebrado o 90º aniversário da Revolução de Outubro, a da Rússia de 1917. "É angustiante ver toda aquela gente, na Festa do Avante, comemorar os 90 anos de uma das maiores tragédias da humanidade", escrevia JCD. Seguia-se um parágrafo mais explicativo da "tragédia", com o seu rol de mortos e, à frente, a seguinte frase, bastante retórica, que indignara Daniel Oliveira: "não seria muito diferente celebrar a peste negra, o holocausto, o último tsunami ou a SIDA".
O autor de Arrastão respondia com uma tirada dramática: "o grande problema dos que se julgam no lugar certo da história, sejam eles comunistas ou liberais, é que rapidamente se deixam de dar ao trabalho de pensar. Não é que não consigam, apenas ninguém lhes exige esse esforço quando falam dos derrotados".
JCD ficou-se a rir e eu fiquei fascinado com esta última frase. Para Daniel Oliveira, as pessoas que celebram a revolução de Outubro, o leninismo, são os derrotados da história. Daniel podia ter demolido a fraqueza das comparações de JCD como quem acalma leões, mas saiu-lhe assim. É que não faz sentido comparar Revolução de Outubro com peste negra. A coisa ainda passava se fosse com a revolução francesa. Podia ter escrito: "não seria muito diferente do que celebrar a revolução francesa", mas não o fez, apesar da comparação ser possível, com o rol de mortos, de injustiças e guerra civil, apesar de tudo numa escala mais modesta. Será que JCD se angustia todos os 14 de Julho?
Digo isto por estar fascinado com o uso da palavra "angustiante" por JCD, na primeira frase do seu post: "É angustiante ver toda aquela gente a comemorar os 90 anos...". As religiões mataram incontáveis vítimas e todos os dias são celebradas em cerimónias públicas. Acontece em todo o mundo, e JCD deve andar muito deprimido. Um pequeno exemplo: os cristãos falharam de forma clamorosa na protecção dos judeus europeus, nos anos 30 e 40; o Papa até pediu anteontem desculpa, embora sem se colocar no lado dos derrotados da história; o cristianismo cometeu outros crimes, da Inquisição à conversão forçada de milhões de pessoas; o mesmo se pode dizer de outras religiões; mas talvez isto tenha mais a ver com pessoas do que com ideologias, embora eu não esteja certo de que JCD concorde comigo.
A revolução de Outubro não foi exactamente uma peste negra, ou um tsunami, pois não teve nada de catástrofe natural. Foi uma catástrofe provocada pelo Homem, por homens de uma determinada época, com as motivações do seu tempo. É o que acontece na construção de qualquer beco sem saída. Ao longo da história, houve sociedades, civilizações inteiras, que se suicidaram. As provas são mais ténues, mas sabe-se hoje que os Maias viviam em constante conflito interno, com devastações regulares de cidades-Estado rivais. Alguns arqueólogos pensam que o colapso desta civilização se deve a algum azar, mas sobretudo a problemas ecológicos graves, devido ao excesso de uso de recursos escassos. De qualquer forma, tratava-se de um cultura violenta, com uma religião que praticava sacrifícios humanos.
Será que JCD se teria angustiado, ao ver-me a escalar pirâmides maias, boquiaberto com a sua magnificência?
Neste género de texto, os factos são como as cerejas e, de súbito, lembrei-me de um pequeno crime da minha autoria. (Não, não vos vou contar uma história policial passada nas ruínas de uma cidade maia)...
Em Chichen Itzá, decidi (mal) saltar um muro que me pareceu sólido, mas aquilo era tão frágil que, com o (enorme) peso do meu corpo, se soltou uma pedra. Para meu horror, vi a ancestral relíquia rolar pela relva. Em pânico, peguei naquele frágil testemunho do passado (que pesava um horror) e tentei colocá-lo de novo no muro, mas a construção ainda era bastante alta e não tive força. Estava calor, confesso que fiquei enervado. Olhei para um lado e outro e (cobarde) deixei a pedra onde ela tinha caído, a dois metros do sítio onde mil anos a tinham deixado, até ao meu inqualificável acto de vandalismo.
Ajudei, pois, a arruinar uma pérola do património mundial, como um qualquer turista americano.
Ah! Felizmente, os guardas eram todos maias, portanto, derrotados da história.
Na vergonhosa fuga ainda vi pessoas a celebrarem uma espécie de religião inventada, na escadaria da pirâmide principal, vestidas com roupas pós-modernas. A cerimónia incluía umas rezas, murmuradas de frente para o sol, que desmaiava no final de tarde. Os celebrantes estavam de braços abertos, ar compenetrado de quem fala com deuses apenas adormecidos.
Os pós-modernos ignoraram-me tanto como os guardas. Eu sentia a culpa de ter transformado em ruínas uma sábia cultura antiga, mas confiei no lusco-fusco. O céu estava cheio de nuvens coloridas e a grande pirâmide parecia feita de ouro, banhada pela luz exuberante, que se retirava no horizonte. Foi uma visão breve. Depois, a montanha de pedra tombou na escuridão da noite...

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