As emoções básicas (crónica) XIII
A arma encravada
Parece que chego tarde a todas as conversas. Quando tenho alguma coisa de interessante para dizer sobre os temas do dia, já antes alguém disse algo de bem mais inteligente. Isto acontece-me tantas vezes, que me habituei a ficar calado. Vejo os outros a conversar, treinei-me nessa observação. Gosto do exercício. Estou sempre a torcer por alguém, quando há debate de ideias, e fico maravilhado como algumas pessoas têm a arte de, no tempo que demora a incendiar um fósforo, rematar com um argumento demolidor.
O gosto de ouvir os outros a falar tem certamente lados negativos: quando sei que posso ser pertinente, num determinado ponto da conversa, sinto tal desejo de dizer coisas acertadas, que interrompo os outros à bruta, para dizer essa tal frase que entretanto me escapou da ideia. E, no embaraço, levanto a voz, à qual dou uma ênfase que não queria dar à partida.
Ainda é pior quando me fazem uma pergunta: aí, ou a pergunta é certeira e dou a minha opinião ou, o que é mais normal, começo por tentar levar a conversa para o ponto que achava mais importante, mas que não estava contido na pergunta. E o exercício torna-se fútil, pois quem perguntou resiste aos meus esforços. Se, por qualquer milagre, consigo entrar no ponto que queria sublinhar, geralmente já acabou o tempo.
Era isto que eu queria escrever, não apenas chego tarde às conversas, mas parece que não tenho a inteligência social para me moldar às conversas dos outros. Anteontem, estava tão impaciente, num ambiente estranho para mim, que fui de uma brutalidade extrema com uma pessoa. Depois, nem lhe pedi desculpa. Os que me conhecem sabem que posso ser invulgarmente bruto numa banal troca de impressões. Como se aquilo que quero verdadeiramente dizer não seja formulado da maneira que pretendia, como se houvesse uma máquina na minha mente que muda todo o sentido das frases pensadas, por causa da urgência, por não haver tempo para fluir o raciocínio inicial e ser necessário entrar num programa acelerado, mais de combate do que de descontraído diálogo. E, claro, o programa transforma num turbilhão confuso o que, no meu pensamento, parecia estruturado. Enfim, há muitas conversas onde não acerto uma. Algumas pessoas pensam que é arrogância, mas é falha de outra natureza.
Por isso, muitas vezes, prefiro ficar calado e sonhar com o que diria, se as circunstâncias me permitissem. É engraçado como no silêncio todos os discursos se tornam tão perfeitos.
Na imaginação, sou um grande orador. Se estiver sozinho, sem medo, posso declamar um poema. Não me embrulho nas sílabas e o vocabulário expande-se, como que por milagre. Os erros gramaticais dissipam-se (é curioso como, em conversa, cometo tantos erros gramaticais, sobretudo quando me enervo).
E, agora, reparo: escrevi uma crónica confessional. O que querem as pessoas saber destes receios absolutamente individuais? E, tendo estado toda a tarde a meditar sobre outros assuntos, de como o mundo contemporâneo é demasiado explícito, virado para prazeres do indivíduo, esquecido da solidariedade, muito técnico e superficial, feito de fogo-de-artifício e luzes de néon, é curioso que me tenha saído esta crónica meio atabalhoada e cheia de autocomiseração, sem nenhum tema que se veja, sem uma palavra sobre os assuntos que afligem os nossos contemporâneos e que, afinal, já foram devidamente dissecados por toda a gente desta imensa conversa, a blogosfera, onde chego sistematicamente atrasado.
Uma palavra sobre a ilustração: foi tirada do filme "O Homem que Matou Liberty Valance", de John Ford, que devia ser o tema desta crónica. Como não consegui escrever sobre o filme, e na medida em que as ideias são como as cerejas, lembrei-me da importância da palavra nesta obra-prima do cinema, pois o bruto é vencido também pela força dos argumentos retóricos, que funcionam na sua qualidade de rolo compressor da História. O filme fala de um problema muito contemporâneo: a incerteza sobre o que é a verdade. Lembram-se do famoso "print the legend" que tanto nos explica sobre aquilo que nos rodeia?
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