As emoções básicas (crónica) XV
Máscaras
Uma crónica a sério deve ter relação com o tempo. Não sendo tão imediato como uma notícia ou uma reportagem, este tipo de texto jornalístico parte da actualidade, de uma pequena observação ou da reflexão do autor sobre acontecimentos gerais, mesmo que não passe da constatação de uma minúcia, de um pequenino costume.
É por isso que estas emoções básicas não são crónicas verdadeiras. No fundo, algumas nem tiveram tema. Infelizmente, não consegui reflectir sobre nenhum dos assuntos que afligem o país. Podia ter falado da crise dos partidos, dar a minha opinião sobre a forma como em cada um deles se degrada a qualidade média dos dirigentes; podia ter mencionado o pecado fundamental da política, de como os poderosos esquecem as promessas que fazem em campanha, uma vez atingido o poder. Além disso, o nosso sistema bipartidário parece não ter solução: um dos partidos atraiçoou a sua própria base eleitoral e o outro abandonou as suas elites numa ilha deserta. Quando houver eleições, as pessoas não irão votar.
Era sem dúvida um excelente assunto, escrever aqui sobre as razões do pessimismo português (o segundo pior da Europa, dizem). Mas confesso que não as entendo. Só poderia dizer banalidades.
Também não cumpri outra das regras de ouro da crónica: embora a forma desta seja criativa, o conteúdo tem de ser rigorosamente verdadeiro. E pelo menos um dos textos da série era totalmente inventado, na realidade um pequeno conto sobre uma parvoíce governamental. E confesso que havia farrapos de ficção noutros textos.
Mas é esta a liberdade que nos dá a chamada blogoesfera. Estas pseudo-crónicas são muito pessoais, quase diarísticas, ao sabor do capricho e esquecidas das boas regras.
Ao ver o que escrevi até agora, percebo que nunca mencionei aqui a emoção da alegria. Falei das outras emoções básicas (do desprezo, até, que alguns psicólogos duvidam pertencer ao grupo essencial, que limitam a seis). Na sua maioria, os textos são sobre a surpresa, talvez porque esta seja a emoção mais apropriada para crónica, já que o mundo nos surpreende em todas as suas variações, e constantemente.
Apeteceu-me, várias vezes, colocar outra palavra na emoção básica que servia de mote e talvez esta lista devesse ter muitas mais, da inveja ao fanatismo, da serenidade ao fascínio, da piedade ao pavor.
Em tempos de pessimismo, no início do Outono, é estranho querer falar sobre a alegria. O céu está cinzento e a rua caótica. As pessoas andam taciturnas e o País parece estar a viver numa espécie de semi-pesadelo, ou pelo menos num sonho intranquilo.
As primeiras chuvas originaram inundações, como se ninguém estivesse preparado para as situações previsíveis. E, se procuro indícios de alegria nas pessoas, encontro sobretudo uma inquietação sem nome: em dois dias, viajei quatro vezes de táxi e três dos motoristas guiavam totalmente passados. O primeiro, furioso, contou-me uma confusa história de um tenente-coronel bêbado que ele transportara e que o insultou à chegada; o homem tinha sido soldado na guerra e jurou-me que o oficial escapara a um bom correctivo; o segundo taxista quase abalroou meia dúzia de carros, sem razão aparente; e o terceiro começou de repente a insultar outro motorista que não tinha feito nenhum erro visível.
No outro dia, pus-me a olhar para a cara das pessoas na rua. A caminho dos empregos maçadores, todas pareciam usar máscaras sombrias. Tinham dormido pouco. Andavam como sonâmbulos no passeio, as faces fechadas, o olhar zonzo, um ar triste.
E como se tornou estranho ouvir de repente o riso de um desconhecido. Parece que aquela gargalhada súbita, saída do nada, é uma espécie de insulto ao nosso fardo de problemas.
Sim, até parece que a alegria já não tem lugar na nossa comunidade. E bastava andarmos um pouco menos distraídos no interior dos nossos pensamentos. Porque de repente, o sol irrompe do tecto de nuvens e desce pela calçada um homem que assobia uma melodia na moda. E, mais à frente, uma rapariga bonita sorri e até parece que com esse pequeno gesto regressou a Primavera.
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