segunda-feira, outubro 01, 2007

Cinema nostalgia (14)


Blade Runner

Hoje é um filme de culto, mas na altura dividiu opiniões. Adorei-o, na primeira vez que o vi. Penso que é um dos últimos grandes filmes dos anos 80, um dos mais imitados e um dos derradeiros clássicos.
Explico-me melhor: no futuro, na época que será a de Blade Runner, talvez o cinema esteja dividido entre clássico, baseado em histórias e personagens, e pós-clássico, com a sua obsessão por efeitos digitais e onde o enredo é uma componente secundária. Dito de outra forma, talvez o cinema se esteja a tentar libertar da literatura, em busca de um terreno dominado pelo lado visual.
Apesar de tudo, no ano em que foi feito, 1982, Blade Runner era uma película muito ousada, até estranhíssima, misturando elementos de uma realidade ampliada, de banda desenhada e policial negro, com ambientes expressionistas, arquitectura futurista, imagens dentro da imagem. Sem abandonar os modelos do seu tempo, incorporava ideias de diversas origens. Por isso, talvez seja um dos primeiros filmes verdadeiramente pós-modernos.
A história baseava-se numa ideia central que ia beber ao cerne do filme negro: o protagonista, Deckard (Harrison Ford), parecia uma pobre figura. Quase sentíamos a sua inferioridade, a dor física, as dúvidas, as hesitações, o conflito moral, enquanto ele tentava caçar os replicant, seres manipulados geneticamente que mal se distinguiam dos humanos. Deckard é um homem duro, sem dúvida, um detective disposto a cumprir a sua missão. Mas a que preço! A sua fragilidade, em contraste com as personagens que aquele actor então encarnava, era quase tocante. Estes heróis divididos anunciavam uma nova era digital, fragmentada e ambígua.
Além dos actores (Rutger Hauer, Sean Young), o filme tinha outros pontos fortes, como a música electrónica de Vangelis, que ajudou imenso a criar uma atmosfera futurista, sem falar na competente realização de Ridley Scott, que vinha da publicidade e sabia gerir um ritmo alucinante.
Se não me engano, este foi o primeiro filme (de muitos) baseado numa história de Philip K. Dick. O magnífico escritor não tinha a arte da prosa de Ray Bradbury (para citar um exemplo de outro grande autor de ficção científica), mas conseguiu, como ninguém, reflectir sobre um problema contemporâneo crucial: nas suas histórias, tudo gira em torno da incerteza do observador em relação ao que é a realidade.
Esta não é apenas incerta, ela pode ser manipulada. No caso de Blade Runner, temos uma incógnita centrada na questão do humano. O que é um ser humano, após a manipulação genética?
Como visionário, Dick compreendeu de imediato as implicações morais da tecnologia genética e da sua manipulação. Mas acho que consegue ir mais longe, tocando num nervo que hoje já é mais compreensível: o que vemos pode não ser autêntico.
Existe uma incerteza em todas as imagens, pois a tecnologia facilitou a sua adulteração; existe dúvida em cada momento das histórias que os media veiculam; existe uma manipulação silenciosa em tudo o que nos rodeia. O corolário era a ideia da paranóia, que invadiu o cinema contemporâneo, num exagero não inteiramente compreensível.
Na arte dos românticos, havia bons e maus, sem cinzentos; os modernistas carregaram nos cinzentos; e a evolução disto é a total inversão da ordem; o mal e o bem estão de tal forma misturados que se tornam difíceis de distinguir um dos outro. Acho que Blade Runner foi um precursor desta nova forma de ver o mundo. É também um daqueles filmes felizes, destinados a serem imitados e copiados, como Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick (71); Johnny Guitar, de Nicolas Ray (54); Metropolis de Fritz Lang (27) ou ainda À Bout de Souffle, de Jean-Luc Godard (59).
Modelos de vida humana que deram incontáveis clones.

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