As Emoções Básicas (crónica) IX
O primeiro-ministro estava com grande dor de cabeça. Ninguém vira a sua queda, na véspera, nos jardins de São Bento. Batera com a nuca e estava com amnésia, mas o governante decidiu mesmo assim prosseguir com a visita à escola.
Impecável. Excelentes instalações. E ficou impressionado com as respostas prontas dos meninos e das meninas.
- Estamos a produzir crianças cada vez mais inteligentes, disse o primeiro-ministro, para aprovação geral das professoras e dos jornalistas. A ministra concordou, lançando-se de imediato num erudito monólogo, que todos aplaudiram no final.
O primeiro-ministro estranhou que as crianças aplaudissem. Estavam todas tão limpinhas, tão interessadas nos novos computadores da escola.
- O plano tecnológico está a funcionar às mil maravilhas, afirmou a ministra, como se lesse os pensamentos do líder.
Foi então que o primeiro-ministro notou, com estranheza, a extraordinária beleza de todas as professoras. Pareciam saídas de páginas de revista. Os jornalistas também pareciam invulgarmente sofisticados. E, na rua, militantes do partido agitavam bandeiras, sem grande convicção, e gritavam vivas.
Intrigado com aquilo, no final da visita, já dentro do BMW oficial, o primeiro-ministro decidiu interrogar o seu assessor.
- Achei aquelas crianças demasiado...como posso dizer?...demasiado perfeitas. Como é que isso se explica?
- Eram actores, senhor primeiro-ministro.
- Não compreendo...
- As crianças foram contratadas por uma agência de casting.
- E as professoras eram demasiado bonitas...
- Todas top model. Nestas ocasiões, procuramos sempre o melhor...
- E os jornalistas?
- Actores profissionais. Do Dona Maria, sobretudo, mas veio um cantor do São Carlos, aquele que lhe fez uma pergunta a cantar...
- Achei estranho.
- As perguntas são todas estudadas e preferimos actores com experiência.
- Mas, e a ministra?
- A agência de comunicação também tratou disso.
- E os militantes?
- Pagos à hora. Vieram numa excursão.
- Bem, e você?
- Fui contratado na semana passada, não se lembra? Antes, fiz aquele anúncio da Coca-Cola...
O primeiro-ministro avançou para o lugar da frente e, alarmado, ordenou ao motorista:
- A toda a velocidade, leve-me para o hospital mais próximo. Esta amnésia pode ser perigosa...
O motorista olhou para trás, desconsolado:
- Eu não sei conduzir, senhor primeiro-ministro. Sou actor de cinema e disseram-me para me sentar aqui. E é tudo o que sei fazer.
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