As emoções básicas (crónica) III
No magnífico IX jantar do Corta-Fitas, ontem realizado, um dos tópicos de conversação foi a questão direita-esquerda. Embora nenhuma afirmação parecesse controversa, acho que este é um bom mote para uma crónica sobre a aversão entre as duas tribos.
As pessoas gostam de rótulos e por vezes fascinam-se demasiado com as ordens taxionómicas que inventam. Devia ter dito naquele jantar que não acredito na existência de divisões claras entre direita e esquerda, que isso já não serve para representar a realidade que nos rodeia e que apenas no passado encontramos a clivagem.
(mas sofro da síndroma da escada, que surge naquelas ocasiões embaraçosas e inesperadas, quando descemos a escada do prédio e encontramos um vizinho, primeiro o cumprimento mais ou menos afável, mas de súbito já vamos a descer o patamar, lembramo-nos de um assunto importante, o vizinho subiu um lanço de escadas e nós descemos dois, e ficamos a discutir o assunto a uma distância que nos obriga a gritar).
Os que se afirmam de esquerda são, tantas vezes, os mais conservadores.
(veja-se a recente polémica entre João Távora e Daniel Oliveira, neste blogue. O esquerdista escreveu que os monárquicos militantes são patéticos; sem notar que a sua posição, que impedia à partida qualquer discussão sobre o regime político, era ultra-conservadora).
A Europa mudou muito e por vezes parece-me que as pessoas não avaliam até que ponto isso é um facto. Uma das chaves para compreender esta realidade é a palavra convergência. Ela tem sido usada num aspecto algo limitado e burocrático: a convergência real dos rendimentos per capita medidos em paridades de poder de compra. Em resumo, as políticas europeias criaram um mercado único com liberdade de circulação de pessoas, bens e capitais, visando obter um equilíbrio de rendimentos a nível europeu. Ao longo dos últimos 50 anos, a integração europeia criou um espaço de riqueza onde ocorreu também convergência real.
Dito assim, parece aborrecido. Mas a realidade é mais complexa. A convergência não é apenas de rendimento, mas verifica-se em quase todos os aspectos da sociedade: nos impostos, na mentalidade, na educação, nos sistemas de saúde, no trabalho, na microeconomia, na liberdade de imprensa, nos direitos dos cidadãos, e por aí fora.
(tudo por causa das salsichas)
A União Europeia
(a fábrica de salsichas)
produz dois terços da nossa legislação. Os parlamentos nacionais adoptam estas leis podendo alterar algumas dentro de certos parâmetros previstos no documento original; em certos casos, a adaptação é mínima. Este é um dos grandes segredos da UE, pois nenhum parlamento gosta de admitir que muito do que faz é adoptar o que outros fazem.
(a salsicha é apresentada como prato nacional; há quem ponha batatinhas, ou arrozinho, ou um fio de azeite, ou um bocadinho de massa; mas toda a gente come salsichas).
É por isto que tantos países querem aderir à União Europeia: ela fabrica as melhores leis do mundo.
Outro exemplo: ontem, ao escrever um artigo no meu jornal sobre um político belga, tive de mergulhar na complexidade da política belga.
O meu primeiro objectivo era perceber se o senhor era de direita ou de esquerda. À medida que li mais coisas, apercebi-me da complexidade da situação. Ele podia ser mais ou menos assimilado à direita (ou ao centro), mas poderia vir a integrar um governo de esquerda, pois era francófono e o partido flamengo da mesma cor perdera as eleições. Aquilo era mais parecido com questões clubísticas do que políticas. Para perceber as coligações belgas é necessário, no mínimo, tirar um mestrado em ciência política ou ser jornalista especializado em clubes de futebol. Mas a rotativa não podia esperar e eu lá escrevi o artigo, na minha ignorância, sem conseguir pôr um rótulo no senhor.
Acho que a convergência europeia, as políticas que todos têm de imitar (se não se imitar o vizinho, ficamos para trás na competição), mudaram muito este esquema simples da direita-esquerda, que nos era tão familiar e confortável.
A Europa é hoje um vasto espaço de classe média. Oito em cada dez europeus são pequeno-burgueses assumidos (como eu). Nas franjas, os muito ricos e os muito pobres. E só para eles há diferenças reais de política direita-esquerda. Para os ricos, a esquerda exige impostos acima de 50% e a direita abaixo de 50%. Em relação aos excluídos, o debate é se haverá caridade pública ou caridade privada. Pede-se, portanto, aos 80% do centro que votem e eles votam...no centro...que como toda a gente sabe, é um lugar que não existe.
A ilustração foi furtada na net e lamento a pirataria, mas é muito boa e não resisti
Etiquetas: aversão, Crónicas, emoções básicas