sexta-feira, julho 06, 2007

As emoções básicas (crónica) V



De como gostamos da violência
De onde vem a raiva contemporânea, essa intensa ira que nos corrói? Toda a cultura popular é feita de imagens de extrema agressão; a informação, o entretenimento, o que nos chega pelos espelhos que nos rodeiam, tudo é feito de grotesco, desumano e distorcido.
Seja qual for a comparação, os contemporâneos vivem melhor do que nunca. Viajamos, temos acesso a um bem-estar jamais visto, a confortos que no passado pertenciam apenas aos poderosos. E, no entanto, quase ninguém parece satisfeito, como se toda a gente fosse insaciável, todos ao mesmo tempo.
Confesso que me confunde, esta insatisfação quase revoltada. Há quem explique a ira contemporânea pela vaidade intranquila, a perturbação de ver os outros subir na vida. Seria, pois, a inveja a dominar o nosso mundo.
Mas a explicação não me parece suficiente para se compreender a inundação de imagens de extrema violência.
Abro a televisão e ali passam resumos de filmes: são extractos breves do essencial, uma sequência rápida de efeitos especiais onde se podem ver pessoas a ser desfeitas, pedaço a pedaço, com volúpia...
Ainda não tinha visto um filme muito popular há dois anos: A Guerra dos Mundos, de Steven Spielberg, baseado em H. G. Wells. Gosto muito do livro original e também gostei de um filme dos anos 50 em que a invasão marciana era uma espécie de metáfora do seu tempo da guerra fria (os americanos eram pacíficos, quase ingénuos, bonzinhos e inocentes). Na nova versão (que vi um dia destes) para meu espanto, Spielberg corta Wells às postas e faz do original gato-sapato. O filme é uma xaropada sentimental sobre um mau pai que protege as suas irritantes criancinhas, as quais guincham histericamente todo o filme, enquanto o absurdo progenitor anda de um lado para o outro a atropelar refugiados como ele. Torci pelos invasores. Na versão de 50, os americanos ajudam-se uns aos outros, estão do mesmo lado, querem defender o seu país. Na versão pós-11 de Setembro, é cada um por si. Tom Cruise chega a matar um homem que lhe salvara a vida.
De onde nos vem esta raiva? É este um sinal de algo mais fundo?
A TV passa uma genial série, Roma, onde a violência está de tal modo integrada na história, que faz sentido. Acho que a série tem um argumento impressionante, muitíssimo bem feito, com personagens desenhadas ao pormenor, de enorme riqueza de nuances psicológicas. Mas o que me fascina, nesta série de TV, é a forma como os argumentistas falam de nós, parecendo que nos contam uma história sobre o fim da república romana e a guerra civil que levará ao império. (Não posso deixar de referir a excelência deste programa, dos actores à realização, passando pelo texto, os figurinos, gráficos ou fotografia).
O fundo histórico é um pretexto (e nem me refiro aos erros). O que é ali importante é a exibição da ira contemporânea, cuja origem não é de todo clara.
Não assenta na divisão em classes, pois todas as classes a possuem na mesma proporção. Não é o hedonismo dos ricos, pois também os miseráveis são cruéis. Não tem a ver com a natureza humana, pois tanto os bons e inocentes, como os maus e hipócritas, adoram a violência e vivem na violência.
Mas atravessa toda aquela história um lugar comum da ira: a ausência de valores. O único verdadeiro idealista, o judeu Timão, após uma carreira de matança insensata, tenta libertar-se do horror, mas tragicamente sem o conseguir. É o único que o tenta fazer, nesta história sobre o poder e a traição, sobre ambições sem limites e o elaborado acaso. Roma é um espelho do mundo contemporâneo, que também se debate numa espécie de guerra civil: vive numa crise insondável, com nostalgia de um passado feito de heróis destemidos e honrados. Um passado inatingível. É um mundo sem esperança, que desconhece ainda estar a criar a sua própria destruição.

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