quarta-feira, setembro 05, 2007

As Emoções Básicas (crónica) XI



Os Livros e a vida


Segue na blogosfera um interessantíssimo debate sobre literatura, baseado numa corrente onde cada bloguer elabora uma lista de livros que não mudaram a sua vida. Peço a vossa atenção, não apenas para a lista do Pedro Correia, um pouco mais abaixo neste blogue, mas para os interessantíssimos textos que Francisco José Viegas, Carla Quevedo e Luís Mourão, entre outros, já publicaram sobre o tema.
Esta crónica não surge como comentário à iniciativa, mas a diversidade das listas e, sobretudo, a sua pequenez, surpreendeu-me e suscita esta observação:
No início do século XX, os europeus burgueses e cultos liam todos mais ou menos as mesmas coisas. Se fossem ricos, teriam uma excelente biblioteca, com 6 ou 7 mil volumes, incluindo clássicos romanos e gregos, romance francês e russo, muitos autores alemães, italianos e ingleses. Uma boa biblioteca teria poesia, pequena novela, o essencial da literatura dos respectivos países; os nomes seriam quase sempre idênticos. Poderíamos viajar por toda a Europa civilizada e as bibliotecas seriam parecidas, à excepção da parte de autores nacionais.
Isto, claro, já não é assim. As pessoas cultas lêem livros diferentes. Suponho que a maior razão para a diversidade tenha a ver com a quantidade de livros que a civilização contemporânea produz. Cito de cor, mas havia uma notícia recente sobre alguém que se deu ao trabalho de fazer as contas: este ano, serão editados tantos livros como na década de 80, um número idêntico ao do século XIX, a mesma quantidade que foi produzida entre o ano 1000 e o ano 1700.
O fenómeno da aceleração não é exclusivo da literatura, aplica-se a todas as áreas do pensamento. Há milhões de cientistas no mundo e certamente milhares a estudarem ao mesmo tempo os mesmos detalhes de especialidades absolutamente incompreensíveis para a restante humanidade.
Na arte, acho que este fenómeno produz uma sensação de que ninguém é verdadeiramente culto. É impossível ler tudo. Não há tempo suficiente. Somos massacrados com imagens, espectáculos, cultura popular, banalidades. Dispersamo-nos em jogos, trabalhos complexos, múltiplas actividades.
Por isso, qualquer cânone literário sugerido terá sempre importantes lacunas, pois também os clássicos aceleram: há mais nomes, mais obras imortais.
Existe outro problema: nas esponjas em que se transformaram os nossos pobres cérebros, não há tempo para absorver as culminações da arte ocidental. Uma pessoa que tenha ouvido menos de cinco vezes a Paixão Segundo São Mateus compreende verdadeiramente a sua profundidade? E Guerra e Paz, quantas vezes é preciso ler?
No fundo, quero dizer que tudo se tornou um pouco arbitrário; e o nosso gosto, uma defesa contra a enxurrada de estímulos, funciona como um cone que está à nossa frente e nos impede de procurar outras sensações. Não há tempo para explorar novas propostas, prometemos para outra ocasião, adiamos.
Por vezes, temos sorte, encontramos por acidente uma obra de arte que nos encanta.
Digo isto por ter chegado de férias com o papo cheio. Tive a sorte de ver uma exposição de gravuras de Francisco Goya.
Eram demasiadas, claro, e tinha pouco tempo para as ver. Memorizei o possível, observei atentamente cada gravura, percorri as salas com disciplina, tentando esvaziar a cabeça de outras questões, concentrado naquilo que via.
E, passadas umas semanas, sinto que o essencial de Goya me escapou, que as mensagens do autor estão perdidas algures na minha memória incompetente e traiçoeira, na minha cultura cada vez mais incompleta.
Como admiro aqueles cavalheiros antigos que podiam dissertar com os amigos sobre as órbitas mais altas do seu mundo intelectual, bebendo o seu brandy enquanto jogavam xadrez junto a desempoeiradas e gigantescas bibliotecas. Era um universo previsível e sensato, onde o tempo valia. Que inveja! Eu, contemporânea barata tonta, ando a saltitar de sensação em sensação, num nevoeiro de drogado. Para mim, o tempo cavalga e corre, literalmente.

ilustração: pintura de Jan Vermeulen, séc. XVII

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