Cinema Nostalgia (9)
Noites Brancas
Alguns filmes valem pela atmosfera que os seus autores conseguem criar. É uma qualidade difícil de definir, talvez relacionada com detalhes quase invisíveis: um reflexo no fundo da imagem, a brisa que agita o cabelo, o som da música que mal se ouve. A capacidade de criar um ambiente geral que se inscreve mais na imaginação de quem vê do que na sequência real das imagens ou da história é própria dos grandes filmes. Explico-me melhor: nem todos os grandes filmes têm esta qualidade intangível, mas quando ela existe, estamos geralmente perante obras-primas.
Serve o longo preâmbulo para lembrar Noites Brancas, de Luchino Visconti (1957). O grande realizador italiano é geralmente mais citado por causa do sublime O Leopardo (1963) ou pelo esplendoroso Morte em Veneza (1971). O prazer de ver um bom filme é algo de pessoal e, no que respeita à obra de Visconti, confesso que fiquei mais impressionado com Obsessão (1943), com Senso (1954), mas sobretudo com este Noites Brancas, baseado na novela homónima de Fiodor Dostoievski.
Na realidade, não se passa muito no filme. Não há uma acção complexa, nem uma história com linha nítida, diálogos imortais. Por vezes, a câmara parece apenas seguir as suas personagens, na húmida escuridão de uma qualquer cidade italiana. Noites Brancas é uma obra sobre a solidão, sobre a ilusão do amor, e um percurso poético pelos labirintos da alma. Uma deambulação onírica.
Um homem apaixona-se com uma mulher que ama outra pessoa e, por breves instantes, sonha com a possibilidade de conquistar aquele amor. A narrativa é apenas isto, mas Visconti consegue ir muito além deste dispositivo aparentemente simples, transformando a cidadezinha numa espécie de palco. Na obra literária, falta a profundidade dos trabalhos posteriores de Dostoievski, a compreensão total do humano. No fundo, é quase ingénua, banal e infantil a personagem feminina que, todas as noites, espera ansiosamente o homem por quem se apaixonou. E é patético o narrador, que ouve a sua história sem que ela compreenda o amor que lhe provocou. E, de súbito, surge o amante que prometera regressar e temos o desenlace esperado. O narrador vivera uma quimera.
No entanto, ao retirar este triângulo da esfera do real, ao dar-lhe uma dimensão flutuante, própria dos sonhos, Visconti recria a obra literária, concedendo uma importância surpreendente à luz, às sombras, à noite, ao canal que atravessa a vila, à pedra molhada da rua, às paredes mal iluminadas e às janelas ocultas.
Tudo é encenado ao pormenor, num ambiente frio, cheio de neblinas e desencontros, que parece vazio de emoções, mas que afinal se transforma na testemunha quase viva das ridículas paixões humanas.
Sim, parece ser esse o triunfo de Visconti: a atmosfera pulsa, com vida, como se fosse ela a figura principal que observa as pobres personagens. O ambiente, o cenário, é onde nós estamos, os espectadores, absolutamente fascinados com aquela ópera turbulenta que se move à nossa frente.
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