domingo, junho 17, 2007

As emoções básicas (crónica) IV


A sombrinha
Tenho um calendário na parede em frente à minha mesa de trabalho. Inclui detalhes de pinturas do Museu do Prado, uma obra por mês; e, no mês de Junho aparece esta imagem. Chama-se El Quitasol, foi pintado por Francisco Goya, com data de 1777. Um rapaz segura a sombrinha (tem o outro braço dobrado, parece-me que será demasiado comprido, ou o cotovelo excessivamente puxado para a direita, talvez por ser um adolescente ainda com o corpo desproporcionado); a pintura é dominada pela figura de uma jovem (também adolescente); ela tem a cabeça protegida pela sombra do guarda-sol, enfeites no cabelo, brincos brancos, um vestido elegante, azul, uma capa de bom tecido, de onde sai o seu braço, que segura um leque; e, ao colo, dorme um cãozinho, cujos contornos são confusos; talvez o animal tenha uma fita vermelha à volta do pescoço. O jogo de luz, na cara da rapariga, é espantoso. E, depois, há um sorriso...
Na minha parede, no calendário, a imagem é quadrada, limitada ao centro da pintura. Não se percebe bem o que está no fundo. Seria preciso ver a obra original para deslindar todos os detalhes. Lembro-me dela, no andar de topo do museu: é grande, pelo menos um metro e meio de comprido e mais de um metro de altura. Mas quando a vi, estava cansado, já não me recordo exactamente dos pormenores...
(É o grande defeito dos museus bons: queremos ver tudo e acabamos por não ver nada; a mente humana não aguenta mais de cem imagens de cada vez; os museus devem ser vistos durante vários dias, 20 ou 30 pinturas em cada visita).
Não sou historiador de arte e o que me leva a escrever sobre a sombrinha não é a pintura em si, mas o fascínio que ela me tem provocado, nestes 17 dias em que está ali, à minha frente.
O que me ocorre, quando olho a imagem, é a ideia de um mundo que já não existe, luminoso e solar, com uma alegria interna e leve que nos surpreende.
A imagem fascina porque vivemos num mundo cheio de sombras, de cores esbatidas, um pouco nocturno...
(Vivemos rodeados de imagens banais, de tal maneira que mal paramos para desvendar os seus enigmas. Não me estou a esquecer do estilo das cores da publicidade ou da beleza fria da national geographic; mas reparem que essas imagens pertencem a universos que visitamos apenas virtualmente, em papel de 80 gramas; podiam ser de Marte)...
Talvez por isso nos escape, ou encante, esta pintura: a sua alma, a graciosa leveza. As figuras enviam um sorriso de um mundo que já não existe. Mas o que me choca é que o pintor não sabe, as personagens ainda não sabem, mas este mundo feliz deixará de existir ainda em vida destas pessoas autênticas.
A luz evanescente que se espalha de forma desigual; o vestido azul, cujas pregas reflectem o sol dourado; o sono tranquilo e sonhador do cãozinho; e a paciência (talvez apaixonada) do rapaz que segura a sombrinha.
Dentro de uma geração, tudo isto será apenas uma memória, pois uma terrível guerra vai mudar a vida de toda a gente. O pintor sofrerá muitos horrores; e a Espanha, invadida, massacrada, entrará nas trevas.
El Quitasol está longe de ser a melhor pintura de Goya: é uma obra de juventude, que não se compara ao poder trágico dos Fuzilamentos de 3 de Maio, ao erotismo da Maja e aos geniais Pinturas Negras e Desastres de Guerra (que parecem um século à frente do seu tempo).
Esta sombrinha é apenas uma imagem sobre a surpresa, a alegria de viver, ou antes, a esperança da vida futura. E, sabendo nós o que não se encontra nas suas pinceladas, mas que foi captado na essência, há como que uma antecipação da tragédia e da morte, um sorriso que inclui a futura tristeza, e a nostalgia do que inevitavelmente está condenado.

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