Cadernos de Filosofia Política de Adolfo Ernesto (XVIII)
O Abrantes
Encontrei ontem o Abrantes, em São Carlos. Ele é o famoso bloguer que assina com a sua assinatura secreta e cuja defesa do poder tem revelado um herói que infelizmente continua anónimo e que me deu ontem um importante contributo para os meus carnets de filosofia política. O Abrantes não gosta dos holofotes e escondia-se na sombra do camarote ao lado do meu. Só o reconheci por ter resmungado quando alguém por erro abriu a porta do camarote onde se encontrava:
“Aqui, só com cartão do partido”, ordenou ele, antes da porta se fechar de novo.
Reconheci a voz. Aliás, sou o único bloguer que sabe quem é o Abrantes.
Cumprimentei através do tabique:
“Sabes onde está o FAL?”, perguntou o Abrantes, com maus modos.
“Não o vi”.
“Eu não dizia? É uma conspiração!”
Comecei a ler o programa. A ópera era de Mozart e contava a história de um líder benevolente, com maioria absoluta, cuja corte se envolve na intriga e na traição, tudo acabando com um gesto de clemência do bondoso dirigente.
“Vocês, no Corta-Fitas, continuam parvos”, disse o Abrantes.
“Porquê?”
“Recusam-se a ver a beleza da construção do poder e temos de vos pôr na ordem”.
“Achas que somos assim tão relevantes?”
“Pusemos na ordem os professores e os médicos e os funcionários públicos e os jornalistas e os sindicalistas. Vocês são umas formigas”.
Calou-se. As luzes apagavam-se. Começava a música.
Primeiro acto
No palco, um grupo de bajuladores tentava endrominar o chefe. Um lambe-botas ia tão longe que o imperador chegou a protestar, pois ninguém lhe dizia a verdade.
“É importante dizer a verdade ao chefe”, arrisquei, num sussurro para o camarote do Abrantes.
“Tu és muita burro, ò Adolfo Ernesto! E este gajo, o Mozart, não percebia nada de política! O importante é não dizer a verdade ao chefe. Se repetirmos mil vezes uma mentira, então ela transforma-se em verdade. Se só existir a nossa verdade, não haverá oposição. É preciso esmagar a oposição com a exclusividade do nosso ponto de vista”.
“Compreendo. Mas, e se a realidade for diferente?”
“Que queres dizer?”
“Por vezes, a realidade contrasta de forma chocante com as nossas fantasias”.
“Isso nunca acontece. A realidade molda-se ao desejo do líder. Por exemplo, a economia vai lindamente e melhorará”.
“Sem querer contestar, há quem fale em crise...”
“A crise é um estado de espírito e molda-se conforme os desejos do líder benevolente”.
“Mas a conjuntura internacional pode levar a um agravamento da situação”.
“O importante é que os números não o mostrem”.
“Pensei que o importante fossem as pessoas”.
“As pessoas importantes, que estão do nosso lado”.
Os sussurros estavam a incomodar a plateia, que nos mandou calar, com um shhhhh irritado.
Segundo acto
O primeiro impulso do imperador é punir os traidores, mas no último momento ele recua, mostrando humanismo e piedade.
“Sabes, Adolfo Ernesto”, murmurou o Abrantes, “o importante é nunca trair o chefe. E, para isso, devemos ter sempre boas notícias para lhe dar. É por isso que urge dominar os dissidentes e impedi-los de transmitir ideias que possam confundir o povo e ameaçar a maioria absoluta, a qual, como sabes, é a única maneira de governar”.
“Mas a tua função é controlar as notícias?”
“É essencial poder defender o indefensável com fanatismo, nem que por isso me transforme num pateta. Em última análise, quando não é possível controlar as notícias ou impor a nossa visão fanatizada, a minha função é desacreditar o mensageiro”.
“Mas isso não será pior do que aqueles coronéis...”
“É mais moderno...”
Não ouvi o resto desta importante reflexão porque a plateia protestou de novo, com um profundo shhhhhhhh.
No final, o imperador deixou ir em paz o seu amigo, que o tentou assassinar. Apagaram-se as luzes. Houve frenéticos aplausos.
O Abrantes não tinha gostado:
“Pareceu-me uma tentativa de descrever metaforicamente o actual poder. Mas o imperador hesitou em excesso, parecia o Guterres. Hoje em dia, isto seria impossível. Nós tomamos decisões...”
“Mesmo que estejam erradas.”
“Claro. É preciso não hesitar e tomar decisões. Pôr toda a gente na ordem. E há um erro fundamental nesta ópera, que é o facto de se partir do princípio de que a corte ama o seu imperador porque este tem grandes virtudes, quando o amor ao poder se baseia em interesses. A defesa de uma ideia sem ideias só se explica por haver interesses, por exemplo, um tacho.”
“É o teu caso?”
“Se não é, será”.
“Não achas isso demasiado simplista e até autoritário? Quero dizer: quando os assessores tentam limitar a liberdade de informação, isso não será um pouco perigoso?”
“O erro do imperador, nesta história, foi não ter impedido a conspiração inicial que o levou ao dilema de deixar ou não cair o amigo. E, aliás, sou assessor e não sou assessor. Parece paradoxo, mas não é. Afinal, assino com o meu nome no meu blogue, embora o meu nome não tenha qualquer significado e eu, de facto, não exista”.
“És uma personagem”.
“Sou uma personagem, mas tu também”.
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