segunda-feira, outubro 22, 2007

A questão europeia



Referendem a NATO
O Pedro Correia escreveu aqui um texto que repete um argumento disseminado pela blogosfera: a única forma de tornar democrático o novo tratado europeu será submetê-lo a referendo.
Dito assim, parece lógico, como devia ser lógico um referendo à nossa participação na NATO, embora não veja ninguém a pedir tal consulta. E o caso da NATO seria bastante mais normal, pois Portugal não manda coisa nenhuma naquela organização, enquanto que na UE tem alguma voz. Já agora, referendem Quioto, também.
Escrevi no Corta-Fitas, por várias vezes, que seria um erro referendar este tratado (ou outro qualquer). Repito dois ou três argumentos: o referendo só é possível se a pergunta for simples, o que não acontece neste caso; o eleitorado não poderá votar ‘não’; e a uma pergunta aparentemente sem espinhas, ‘quer ou não tratado x’, a resposta ‘não’ será, de facto, ‘quero sair da UE’.

Os defeitos
Isto parece-me tão evidente, que fico perplexo quando não é óbvio para outros.
Por isso, acho que o debate está a ficar esquisito. Para alguns comentadores, este tratado deve ser rejeitado porque tem defeitos. Claro que tem defeitos (levou seis anos a redigir, é uma manta de retalhos quase ilegível); a conclusão é que me parece errada, porque rejeitar este tratado é aceitar o anterior.
É bem mais interessante o argumento deste texto ser parecido com o tratado constitucional que a população rejeitou. Isto parece uma fraude política, embora na verdade os Governos da UE precisem de um novo tratado. Um qualquer, que inclua as regras que vou enunciar. E querem-no desesperadamente, pois há risco de implosão do projecto.

Uma pausa
Neste ponto, é preciso fazer uma pausa e andar para trás. Tentarei explicar em poucas palavras o que de essencial consta deste tratado. No fundo, os líderes europeus aprovaram um documento que altera as instituições e muda o sistema de voto. Esta última é a parte crucial. No tratado ainda em vigor, um trio constituído por Portugal, Grécia e Hungria tem mais peso no Conselho Europeu (onde se tomam as decisões) do que a Alemanha, embora represente apenas um terço da população alemã e um quinto do poder económico.
O sistema de votações passa a ser proporcional, conforme a população. Tendo a UE 500 milhões de pessoas, a Alemanha pesa por 82 milhões e Portugal por 10 milhões. Criar esta diferença foi necessário por causa do alargamento.
A proporcionalidade não se aplica no Parlamento Europeu, onde os grandes ganharam influência, mas com os pequenos a manterem forte presença.
Para todos os países, existe um mecanismo de compensação, que tem a ver com o bloqueio de decisões. Uma coligação de pequenos pode travar uma decisão. É mais difícil fazê-lo, mas isso continua a ser possível.
Há outra questão que costuma ser analisada de forma superficial: as maiorias qualificadas foram alargadas a novas áreas, mas elas já existiam numa série de assuntos. Ninguém as contesta, aliás. Esta perda de soberania não é propriamente igual a um abrir de portões para deixar os bárbaros entrar no castelo.

Resumo
Resumindo, os três grandes serão mais fortes com o Tratado de Lisboa, o que permite acomodar qualquer alargamento. A UE pode crescer para 30 ou 35 membros sem se diluirem excessivamente Reino Unido, Alemanha e França. Este trio mantém enorme poder no sistema. O actual equilíbrio só é perturbado se entrar outro grande, a Turquia.
Já li uma interpretação segundo a qual este tratado é errado e a única solução será criar uma câmara alta, acima do parlamento, um Senado. Esses argumentos esquecem que já existe uma espécie de senado, o Conselho Europeu.

Os efeitos
De qualquer forma, tudo isto é interessante, mas inútil: o novo tratado encerra o debate institucional. Os 27 Governos negociaram isto, não outra coisa qualquer. Se este tratado não existir em 2009, haverá uma crise europeia de efeitos imprevisíveis.
Acho que a UE sobreviveria, mas a Alemanha e a França teriam forte incentivo para negociarem rapidamente algum tipo de alteração que retirasse poderes à organização.
Depois, os dois países avançavam para uma confederação. A integração iria acelerar num núcleo duro com um máximo de oito ou nove membros. Paris e Berlim diriam: se não funciona a 27, então vamos criar um sistema diferente, com vários patamares.
Uma nota adicional: para alguns comentadores na blogosfera, defender este tipo de argumentação é fazer propaganda de Bruxelas. Desvalorizar ou ignorar certas opiniões permite que o debate fique mais fácil.

O músculo
Há também quem lembre (e bem) que a Europa não tem músculo diplomático e militar.
Mas é natural que assim seja, enquanto a UE for constituída por um grupo de nações. As ambições militares da organização são limitadas e isso parece-me um ponto de partida positivo. Mesmo assim, estão em formação os chamados battle groups, unidades que podem ser enviadas para qualquer teatro de guerra sem ajuda da hiperpotência. Falta ainda (corrijam-me, se me engano) meios de transporte aéreo pesado, ou seja, o novo airbus militar em construção, e os futuros porta-aviões inglês e francês (também em construção).
O argumento da fraqueza militar europeia não pega. A Europa tem tudo para ser uma potência na área e não lhe falta nenhuma valência tecnológica.

Fechar o círculo
Neste contexto, não vejo a utilidade de um referendo. Para fazer uma pantomina de democracia?
Para que servem os partidos? E os Governos? Não servem para pensar nestas coisas complexas e que os cidadãos comuns não têm qualquer interesse em dominar?
Como se explica que em 27 Governos não haja um que conteste este tratado, que não o deseje ratificar? Será que os líderes europeus enlouqueceram? E não há outras coisas da nossa vida que nunca foram referendadas e que hoje em dia aceitamos como normais, o sistema de pensões, por exemplo, ou a cobertura universal do sistema de saúde?
A nossa participação na União Europeia é tão normal como, por exemplo, ter segurança social. Querem referendar a segurança social?
Em conclusão, acho que é legítimo e normal que alguém conteste este tratado. No caso português, há um responsável pela assinatura, o primeiro-ministro. A nível político, quem quiser contestar este tratado terá de culpar o Governo ou os partidos que são favoráveis à assinatura, o que inclui PS e PSD. E, depois, votar nos outros que são contra. Esse é o nível a que a democracia tem de funcionar. Esse é o nível onde a democracia deve funcionar.

nota: mais uma vez, peço desculpa pela dimensão do post, mas repito: a pequena dimensão que se espera dos posts favorece a ligeireza do debate e uma discussão ligeira é sempre inútil

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