Triste fado
O despacho do Primeiro-Ministro que considera a Fundação Amália Rodrigues "pessoa colectiva de utilidade pública" na condição de "comprovar a regular constituição dos orgãos sociais e a inexistência de dívidas fiscais à Segurança Social e de entregar a documentação legalmente exigível" revela uma nova filosofia na gestão dos prémios da coisa pública que considero aterradora.
A partir de agora, o acesso às isenções fiscais que a utilidade pública confere não obriga a nada. Basta não cometer ilegalidades; pior, podem-se cometer ilegalidades, desde que estas sejam sanadas num prazo razoável.
Dificilmente poderia conceber uma instituição que merecesse menos este reconhecimento. Conheço bem a história da Fundação Amália Rodrigues. No seu aspecto mais caricato, e to make a long story short, resulta do testamento de Amália feito por um obscuro advogado, ligado aos lóbis barbudos da Faculdade de Direito de Coimbra, que estabelece a vontade de criação de uma fundação que perpetue a sua memória e ajude algumas obras de caridade, bem como doe parte da sua receita à Casa do Artista.
O advogado, nomeado por Amália executor testamentário, auto-proclama-se presidente vitalício da fundação logo após a morte da fadista e estabelece estatutariamente que lhe sucede o filho, à época estudante, também vitaliciamente.
A verdade é que a Casa do Artista nunca recebeu um cêntimo, não há obras de caridade apoiadas e o espólio de Amália Rodrigues está por clarificar. A única obra visível desta fundação é a abertura da Casa-Museu e, segundo notícia do Correio da Manhã, uma dívida de 2,3 milhões de euros ao fisco.
Se exceptuarmos o advogado e o seu filho, que podem ser considerados como público, dificilmente se poderão encontrar características de "utilidade pública" nesta trapalhada.
Não parece ser este o entendimento do primeiro-ministro, que premeia a coisa com honrarias e isenções fiscais. E a pressa é tão grande que nem pede à fundação que formalize a candidatura entregando a documentação e fazendo prova de não ter dívidas. Pelo contrário, concede-lhe os privilégios a crédito, tipo "isente-se agora e mostre depois que é merecedor". Aguardo o próximo episódio (e que não seja processarem-me, porque esse já maça).