A entrevista
Sou marciano e aprendi muito, a ver o programa de ontem na TV. Os portugueses são mestres na arte especial de discutir temas laterais e, lá em Marte, temos muito a aprender. Dou um exemplo: anteontem, na televisão marciana, discutiu-se a Constituição de Europa (o famoso satélite de Júpiter) e, dois dias depois, o planeta ainda não acordou.
Embora não perceba muito de política (não compreendi qual a importância de saber todos os pormenores do currículo do primeiro-ministro), assisti, com interesse, à entrevista de José Sócrates, fascinado pelo grau detalhado de interesse que existe na opinião pública sobre o escandaloso tema das diferenças subtis entre engenheiro e engenheiro técnico. Foi um belo resumo de dois anos de governação.
Lá em Marte, não há teorias de conspiração. Não é como aqui, na Terra portuguesa, onde eles nem disfarçam que fazem de propósito. Inventa-se um tema, para entreter, bate-se muito no peito (porque é uma questão de princípio, naturalmente) e no fim é alegremente esquecida a tinta gasta em tão profundas questões de Estado. Que sabedoria profunda!
Nos temas da economia e da Ota, o interrogatório foi pouco dirigido para o concreto, como convinha. Ouviu-se dizer, fala-se em, parece que. Devia-se discutir uma nova localização, mas ninguém sabe onde ela fica.
No final, para a questão do referendo ao novo tratado europeu, acho que foram vinte segundos, ou talvez mais dois ou três, não consegui cronometrar. Houve risco sério de se adormecer a população.
Quem não tivesse estado atento às notícias, não percebia patavina. Pela primeira vez José Sócrates admitiu não fazer referendo, embora defendendo a sua realização.
Parece óbvio que não faz sentido realizar um referendo onde a resposta está decidida à partida. O País só pode responder “sim” ao novo tratado, pelo que é no mínimo hipocrisia política consultar os eleitores, para mais havendo o perigo de ser discutido o preâmbulo ou a vírgula do currículo do signatário da página 451. Os partidos podem muito bem decidir. Estava a fazer estas reflexões quando caí em mim: este é um raciocínio marciano.
O facto de Portugal ainda não ter ratificado o projecto de tratado coloca o País numa situação bizarra: terá previsivelmente de organizar uma Conferência Intergovernamental (CIG) onde serão introduzidas pequenas modificações cosméticas no documento rejeitado pela França e Holanda. Ou será decidida uma simplificação do documento, também na presidência portuguesa, também através de uma CIG.
E, no entanto, Portugal ainda não manifestou a sua posição. A única maneira de sair do imbróglio é aprovar no parlamento o projecto de tratado, no dia anterior ao início da presidência portuguesa.
Ai! Lá estava eu outra vez a confundir a Europa com o satélite de Júpiter do mesmo nome.