Uma pequena polémica com Paulo Gorjão
Caro Paulo Gorjão:
Há dois problemas na nossa pequena polémica: o senhor tem um pensamento estruturado sobre o tema e eu não tenho; por outro lado, o senhor escreve sobre jornalismo político, enquanto eu (confesso) a única vez que escrevi sobre jornalismo político estampei-me ao comprido. Em relação às "generalidades sem substância", tem razão, estamos ambos nesse barco, até porque escrever sobre isto num post curto é necessariamente difícil. Peço desculpa por não ter acrescentado o facto.
O que gostaria de deixar claro é que um jornal não é feito apenas com jornalismo político, mas é uma máquina muito mais complexa: há crónicas, fait-divers, reportagens, entrevistas, entre muitas outras coisas, tais como egos, dinheiro (ou falta dele). As opiniões num jornal não se limitam a questões da governação. Enfim, há um equilíbrio (um mix, que cada director concebe diferente do outro) entre matérias sérias e trivialidades. Eu, por exemplo, como leitor, não dispenso as trivialidades e adoro fait-divers.
Discordo da sua tese dos 3Q porque, como prático desta disciplina, a tese não me satisfaz. Nunca consegui conceber uma definição teórica da qualidade, mas admiti de imediato que a sua estava errada. O meu post pretendia apenas explicar as insuficiências da teoria.
Mas acho ter percebido o que o senhor quer dizer, ou seja, que os jornais no mercado não o satisfazem porque não aprende nada com eles. Não tenho dúvidas de que esta é uma questão muito séria.
As pessoas que me conhecem sabem que sou algo ingénuo. Apesar disso já vi atropelos às regras. Mas, repito: esta profissão tem regras. É evidente que um bom jornalista só publicará uma informação que considera segura, o que não quer dizer que não seja enganado ou que não tenha excesso de confiança nas fontes, ou que não haja pressões de fecho para publicar a história. O Paulo menciona também as notícias sem dupla confirmação, quando devia mencionar as incompreensíveis dificuldades que os jornalistas enfrentam no seu contacto com a administração pública. É um pesadelo, garanto-lhe. Mas, insisto, o senhor concentra a sua análise no jornalismo político, o qual tem especiais dificuldades em Portugal por causa da nossa classe política.
Acho que no meu post lhe dei dois bons exemplos que parecem refutar a sua tese dos 3Q. Na realidade, não há redacção que tenha especialistas que saibam mais do que alguns dos seus leitores. Por exemplo, escrevi bastante tempo sobre União Europeia e o essencial do meu esforço era tentar evitar um erro catastrófico, pois era lido pelas 150 pessoas que sabem mais do que eu sobre o tema (e provavelmente apenas por essas). O outro exemplo ilustrava o problema do repórter (sempre o mais ignorante no local do crime) e a necessidade de fazer todas as perguntas.
O último problema, que deixei para o fim por ser o mais controverso, é a questão da imparcialidade.
Estou convencido de que a imparcialidade não existe (chame-lhe neutralidade, isenção, etc.). Digo isto pela minha experiência. Fiz umas reportagens no Paquistão, logo a seguir ao 11 de Setembro, e optei por avançar para uma cidade próxima da fronteira com o Afeganistão, Quetta, dominada por tribos Baluches e por refugiados Pastunes que tinham grande afinidade com os talibãs de Kandahar. Tive alguma falta de sorte e nunca consegui chegar a Kandahar, mas o meu trabalho era tentar perceber os talibãs, e conheci vários.
Esforcei-me, confesso, mas nunca consegui ser imparcial. Achava que eles não tinham razão e continuo a pensar assim. Um pequeno detalhe: nessa altura percebi a importância de ter dinheiro e nem queira saber as dificuldades que enfrentei nessa matéria.
Na ocasião, dei-me muito com um jornalista do New York Times, um verdadeiro craque. Andávamos juntos porque havia o risco de alguém querer raptar um americano e eu disfarçava. Um dia, fizemos um trabalho sensacional, ou antes, ele fez as perguntas ao primeiro ferido que chegara dos bombardeamentos americanos a Kandahar (foi uma coisa incrível, nunca vi trabalhar assim). No final, eu tinha uma grande história e pensei que ele também tivesse. Mas o meu colega disse, um pouco desanimado, que em Nova Iorque ninguém ia publicar a reportagem. Porquê, perguntei? E ele respondeu: "Quem é que se vai preocupar com um ferido deles, quando nós perdemos três mil?" Não ponho aqui o nome do jornalista porque posso estar a fazer uma inconfidência, mas o comentário responde bem, a meu ver, ao problema da imparcialidade. E, repare, se em Nova Iorque publicaram alguma coisa, não duvido de que a história era irrepreensível.
E assim termino. Aproveito para ilustrar esta minha opinião com a imagem de outro jornalista parcial, o senhor Viktor Laszlo, cujas convicções me agradam.
Há dois problemas na nossa pequena polémica: o senhor tem um pensamento estruturado sobre o tema e eu não tenho; por outro lado, o senhor escreve sobre jornalismo político, enquanto eu (confesso) a única vez que escrevi sobre jornalismo político estampei-me ao comprido. Em relação às "generalidades sem substância", tem razão, estamos ambos nesse barco, até porque escrever sobre isto num post curto é necessariamente difícil. Peço desculpa por não ter acrescentado o facto.
O que gostaria de deixar claro é que um jornal não é feito apenas com jornalismo político, mas é uma máquina muito mais complexa: há crónicas, fait-divers, reportagens, entrevistas, entre muitas outras coisas, tais como egos, dinheiro (ou falta dele). As opiniões num jornal não se limitam a questões da governação. Enfim, há um equilíbrio (um mix, que cada director concebe diferente do outro) entre matérias sérias e trivialidades. Eu, por exemplo, como leitor, não dispenso as trivialidades e adoro fait-divers.
Discordo da sua tese dos 3Q porque, como prático desta disciplina, a tese não me satisfaz. Nunca consegui conceber uma definição teórica da qualidade, mas admiti de imediato que a sua estava errada. O meu post pretendia apenas explicar as insuficiências da teoria.
Mas acho ter percebido o que o senhor quer dizer, ou seja, que os jornais no mercado não o satisfazem porque não aprende nada com eles. Não tenho dúvidas de que esta é uma questão muito séria.
As pessoas que me conhecem sabem que sou algo ingénuo. Apesar disso já vi atropelos às regras. Mas, repito: esta profissão tem regras. É evidente que um bom jornalista só publicará uma informação que considera segura, o que não quer dizer que não seja enganado ou que não tenha excesso de confiança nas fontes, ou que não haja pressões de fecho para publicar a história. O Paulo menciona também as notícias sem dupla confirmação, quando devia mencionar as incompreensíveis dificuldades que os jornalistas enfrentam no seu contacto com a administração pública. É um pesadelo, garanto-lhe. Mas, insisto, o senhor concentra a sua análise no jornalismo político, o qual tem especiais dificuldades em Portugal por causa da nossa classe política.
Acho que no meu post lhe dei dois bons exemplos que parecem refutar a sua tese dos 3Q. Na realidade, não há redacção que tenha especialistas que saibam mais do que alguns dos seus leitores. Por exemplo, escrevi bastante tempo sobre União Europeia e o essencial do meu esforço era tentar evitar um erro catastrófico, pois era lido pelas 150 pessoas que sabem mais do que eu sobre o tema (e provavelmente apenas por essas). O outro exemplo ilustrava o problema do repórter (sempre o mais ignorante no local do crime) e a necessidade de fazer todas as perguntas.
O último problema, que deixei para o fim por ser o mais controverso, é a questão da imparcialidade.
Estou convencido de que a imparcialidade não existe (chame-lhe neutralidade, isenção, etc.). Digo isto pela minha experiência. Fiz umas reportagens no Paquistão, logo a seguir ao 11 de Setembro, e optei por avançar para uma cidade próxima da fronteira com o Afeganistão, Quetta, dominada por tribos Baluches e por refugiados Pastunes que tinham grande afinidade com os talibãs de Kandahar. Tive alguma falta de sorte e nunca consegui chegar a Kandahar, mas o meu trabalho era tentar perceber os talibãs, e conheci vários.
Esforcei-me, confesso, mas nunca consegui ser imparcial. Achava que eles não tinham razão e continuo a pensar assim. Um pequeno detalhe: nessa altura percebi a importância de ter dinheiro e nem queira saber as dificuldades que enfrentei nessa matéria.
Na ocasião, dei-me muito com um jornalista do New York Times, um verdadeiro craque. Andávamos juntos porque havia o risco de alguém querer raptar um americano e eu disfarçava. Um dia, fizemos um trabalho sensacional, ou antes, ele fez as perguntas ao primeiro ferido que chegara dos bombardeamentos americanos a Kandahar (foi uma coisa incrível, nunca vi trabalhar assim). No final, eu tinha uma grande história e pensei que ele também tivesse. Mas o meu colega disse, um pouco desanimado, que em Nova Iorque ninguém ia publicar a reportagem. Porquê, perguntei? E ele respondeu: "Quem é que se vai preocupar com um ferido deles, quando nós perdemos três mil?" Não ponho aqui o nome do jornalista porque posso estar a fazer uma inconfidência, mas o comentário responde bem, a meu ver, ao problema da imparcialidade. E, repare, se em Nova Iorque publicaram alguma coisa, não duvido de que a história era irrepreensível.
E assim termino. Aproveito para ilustrar esta minha opinião com a imagem de outro jornalista parcial, o senhor Viktor Laszlo, cujas convicções me agradam.
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