segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Notas eleitorais


1. José Sócrates é o grande triunfador do referendo. Uniu o PS nesta campanha, ao contrário do que sucedera com António Guterres em 1998, impôs a consulta popular às restantes forças de esquerda e dividiu a direita. Ninguém pode acusá-lo de falta de coragem política: disse sempre o que queria e para onde ia. Honrou o compromisso estabelecido com o eleitorado de só voltar a legislar sobre o aborto após novo referendo e elegeu para mote da campanha o “sim responsável”, acentuando a imagem de moderação que recolocou o seu partido no eixo central da política portuguesa. Radicalismos? Nem pensar. É um Sócrates mais equilibrado, mais “europeu”, que emerge deste referendo. De caminho, aparenta resolver um problema – o do aborto – que permanecia há décadas sem solução. “Os portugueses querem que este tema deixe de ser um foco de conflito e de disputa política”, sublinhou na noite eleitoral. Palavras que podiam ser proferidas por qualquer cidadão deste país.

2. O que se passa com Marques Mendes? De erro político em erro político, o presidente do PSD vai-se tornando uma figura cada vez mais irrelevante. No caso do aborto, começou por reiterar a liberdade de voto, tradicional entre os sociais-democratas desde o tempo de Sá Carneiro. Salvaguardou a sua posição pessoal (votou “não"), mas fê-lo num palco institucional, falando na sede nacional do partido. Logo a seguir viu quase um terço da sua bancada parlamentar transferir-se para o campo do “sim” e desde então pareceu agir empurrado por terceiros – de Marcelo Rebelo de Sousa, que condicionou toda a campanha laranja, a Manuela Ferreira Leite. Permitindo por um lado que os tempos de antena do PSD se colassem ao “não”, por outro lado aproveitou a recta final da campanha para ensaiar autênticas piruetas verbais, em que quase aparecia como o primeiro dos defensores da despenalização das mulheres. Um “sim” que votava “não”: com isto só baralhou ainda mais o já confuso eleitorado social-democrata. Por contraste, Sócrates proporcionava aos portugueses uma imagem de estadista...

3. O instituto do referendo pode não estar já morto. Mas ficou moribundo com a machadada quase fatal que o eleitorado ontem lhe aplicou. Se até um assunto como o aborto - que durante anos polarizou a sociedade portuguesa - não consegue atrair sequer metade dos eleitores às urnas, que expectativa restará quando se referendar qualquer outro tema? A propósito disto, muito justamente, interrogava-se aqui o Luís Naves em termos que subscrevo. Politicamente válido, como todos os partidos ontem reconheceram, mas inválido nos termos definidos pela Constituição da República, este segundo referendo ao aborto comprova que os portugueses, naturalmente satisfeitos com os mecanismos da democracia representativa, não se sentem atraídos pela democracia directa. Há que respeitar a vontade popular também neste campo. E deixar o referendo em pousio. O que significa isto? Para já, que a regionalização (que só pode avançar por via referendária) fica adiada sine die, o que constitui uma excelente notícia. Teremos sempre de aguardar uma revisão da nossa lei fundamental que altere a moldura constitucional do referendo - a começar pela absurda (e incumprida) regra que exige maioria de votantes para validar a consulta. A avaliar pelos nossos hábitos políticos, é tarefa para demorar anos. Até lá, o referendo bem pode ficar guardado numa qualquer gaveta própria para arquivar inutilidades.

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