quinta-feira, janeiro 18, 2007

Colecção de crónicas (VI)



Quando foi publicado, o romance do (então) desconhecido Louis-Ferdinand Céline Viagem ao Fim da Noite foi lido como obra de um homem de esquerda. Céline é hoje considerado um dos grandes escritores de direita do século XX, por ter publicado panfletos anti-semitas, ter sido condenado como colaboracionista e ostracizado.
Existe uma grande discussão sobre a justiça aplicada a Céline, cujo colaboracionismo não foi tão evidente, ou antes, não maior do que o de alguns dos seus acusadores.
Julgo que o caso ilustra a forma como a chamada esquerda determinou a evolução do modernismo, o que não aconteceu apenas na literatura. Mas, enfim, estas são sobretudo polémicas para a história de arte e o que fica aqui escrito não passa de uma opinião amadora. Podia também mencionar um autor que já referi neste blogue, um escritor húngaro que foi esquecido durante décadas no seu próprio país, por ser conde: Miklós Bánffy, autor de uma obra injustamente afastada, por vezes identificada como Trilogia da Transilvânia.
O que motiva esta crónica é um outro livro que me marcou de forma especial, escrito por um autor britânico também conotado com a direita, Evelyn Waugh. Lembrei-me disso porque chegou agora aos cinemas o novo filme de Woody Allen. O realizador americano não me agrada especialmente, pois nunca mais atingiu o nível de Annie Hall, por exemplo, ou Manhattan. No entanto, o seu novo trabalho tem por título Scoop, que é também o título de um livro de Waugh que considero genial.
As duas obras não têm relação uma com a outra, mas queria partilhar com os leitores o meu entusiasmo por esse romance, cujo título em português é Enviado Especial. Identifico-me imenso com o livro, porque vivi uma situação semelhante à da personagem principal. Além disso, Enviado Especial aborda um tema muito importante para mim: aquilo que consideramos ser verdade é acima de tudo um ponto de vista.
Nunca consegui ler Waugh e Céline como intelectuais de direita. Acho mesmo que eles eram considerados de direita no contexto altamente ideológico do seu tempo, subestimados durante décadas por opiniões que tinham sobre assuntos efémeros, cuja importância para nós já não será válida. As pessoas são também as suas circunstâncias, mas acima de tudo rótulos simplificados.
Despidos de complexidades, banalizados por opiniões secundárias, estes artistas são assim afastados das respectivas obras.
Neste blogue já se discutiu o tema de autores considerados de “esquerda” e avaliados, não pela sua obra, mas pelas opiniões sobre questões de espuma, onde o que se diz nunca tem o peso das palavras efectivamente escritas, das histórias contadas ou das personagens imaginadas.
Na altura, tentei defender a ideia de que não faz sentido aplicar o rótulo de “esquerda” ou de “direita” a uma obra. Talvez fizesse, no tempo de Céline e de Waugh, mas hoje parece-me algo de anacrónico.
O século XX foi terrível para muitos artistas porque ninguém se podia dar ao luxo de não definir o seu campo ideológico. Mas agora, numa altura em que as ideologias se diluem, em que deixa de fazer sentido alguém reclamar-se de “direita” ou de “esquerda”, a arte liberta-se da obsessão do código de barras que a aprisionou durante décadas. Este não é o tempo dos exércitos bem disciplinados onde mal cabiam anarquistas desvairados, como Louis-Ferdinand Céline, burgueses sofisticados, como Evelyn Waugh, ou aristocratas no século errado, como Miklós Bánffy. A arte nunca foi tão livre como hoje.

Imagem: pintura de Janos Tornyai

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