quarta-feira, janeiro 17, 2007

A voz de Freddie

O rádio do táxi gemia uma música dos ‘Queen’, mas ‘Too Much Love Will Kill You’ não parecia a mesma. A meio da corrida percebi porquê. Aquela não era a voz de Freddie Mercury, não aguentava os agudos, não tinha força. Os versos soavam vulgares, como os de uma qualquer canção de amor. Sem excesso, sem a voz que me fazia tremer de emoção na adolescência. O talento morto e insubstituível.
Porque, antes de pagar a conta e fechar a porta do táxi, estava já a remoer na velha máxima, aquela que diz que o cemitério está cheio de insubstituíveis. Eu acredito que sim. Não há quem cante como Freddie Mercury ou jogue como Maradona. No cinema, Humphrey Bogart e Marilyn Monroe não se repetem. E, na minha vida, quantos não voltam? Ao subir as escadas de casa, dei por mim a pensar que não sinto só a falta do amor da minha mãe.
É a minha maior perda, não é a única. Houve outras. Mais pequenas, menos traumáticas. Pessoas, momentos, coisas e bichos. É por isso que não deito fora os bilhetes de cinema e guardo, no bolso de um casaco, a prata de um chocolate que comi em Londres. E do que mando para o lixo nunca me desfaço da memória. Essa fica. Colada ao que sou.
E sou de muitas formas. Vivo no carinho das minhas tias, no olhar do meu pai, na lembrança da minha mãe, no apoio dos amigos. Até na minha gata, na alegria com que me recebe todos os dias, no meu regresso a casa. Sou o que escrevo, o que leio e penso. E penso sempre que todos os citados são insubstituíveis.
Estes e os outros. A gata preta e branca que esperava por mim no segundo degrau da escada e morreu atropelada, a dona Celeste que emigrou para a América, o meu professor primário, os amigos que as circunstâncias afastaram. E os amores. Nos bons momentos e nas horas de mágoa. Foram e são únicos. A seu tempo,a seu jeito. Sei que não se repetem, não há possibilidade de os substituir. Como a voz de Freddie Mercury a cantar ‘Too Much Love Will Kill You’ ou a expressão de Bogart no fim de ‘Casablanca’.
Não que a vida pare, porque não pára. Fica diferente,ajusta-se às perdas, encontra outros caminhos, descobre atalhos e veredas. Nesse instinto que tende para a sobrevivência, o coração faz o mesmo. Guarda a memória, chora o luto e renasce. Para poder receber o futuro e uma nova lista de insubstituíveis. Com caracter único e sem possibilidade de cópia.
Embora eu saiba que uns não apagam os outros e acredite na velha máxima, aquela que diz que os cemitérios estão cheios de gente sem reedição. Acredito em respeito aos que amei, em honra dos que amo e na esperança de que alguém sinta o mesmo por mim. Para que, mesmo depois da morte, possa viver um pouco mais. Na memória do que fui, do que sou hoje.
(esta crónica foi publicada no DN-Madeira)