Antologia Corta-Fitas (VIII)
Janelas
Interrompo o trabalho no computador, levanto-me, espreguiço-me, e passando pela janela olho a praceta enlameada lá em baixo. Cruzo o olhar com o homem do bar vizinho que apanha umas folhas molhadas da esplanada. Intimidados, cada um recolhe “à sua vida”.
A Carolina, na janela da cozinha, sentada sobre o cesto da roupa suja, desvia a cortina e aí fica a ver o movimento da rua, as cores dos carros, a Marta que volta tarde da escola. A chuva copiosa que cai. Com sorte, ainda apanhará a mãe a chegar do trabalho.
No auge da minha inocência, tive direito às minhas janelas. Horas vagas ou de preguiça, intervalos de brincadeiras e de deveres adiados. Refúgios solitários, tempos de crescimento.

Um dia qualquer em Junho, depois de passar no exame da quarta classe, abanquei nessa janela à espera da minha bicicleta, promessa antiga, que com a minha mãe comprara dias antes na Rua do Crucifixo. Se bem me lembro aí dediquei dois ou três dias de interminável espera e cogitação. Vinha uma carrinha de carga, o coração acelerava… repentinamente virava à direita para a Ferreira Borges… bolas! Quando iria ser finalmente feliz? Distraído, contava os carros e fazia secretas apostas. E forçava a recordação visual da bicicleta escolhida, verde metalizada… brilhante cor de sonho. Ironicamente, foi durante uma fortuita e mais demorada ida à mercearia, a recado da minha mãe, que chegou a encomenda. “João! Chegou a bicicleta!”, gritavam as minhas irmãs miúdas enquanto eu chegava a casa com as compras…
Depois, houve aquelas janelas sem vista, que me deixaram um chorrilho de memórias em sons. Pregões e pífaros de amolador, ou o cantar da passarada. As andorinhas e criançada a brincar. Assim era em Campo d’Ourique.

Hoje, em minha casa, mal paro à janela. No máximo, quando está bom tempo, leio à varanda, que não tenho tempo para desperdiçar. Mas, da rua ao fim da tarde, ao chegar a casa, cumprimentando o merceeiro e a vizinha que passa, vislumbro a minha filhota, na janela da cozinha, de sorriso franco que me acena boas vindas. Feliz.
João Távora, 4 de Novembro de 2006
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