Maria Clementina
Foi há muito, muito tempo por esta altura do ano que encontrámos a Maria Clementina abandonada numa ninhada de gatos. Voltávamos então para casa nós os cinco irmãos ainda pequenos, com a minha mãe, de regresso de uma tarde de brincadeira no Jardim da Estrela. A memória é vaga, mas lembro-me de que a bichana não abria os olhos, e que parecia desesperada com o seu miar débil e insistente. Apesar do aspecto raquítico foi escolhida pelo seu traje original: focinho rosado sob uma mascarilha branca, pêlo prateado com umas imaculadas luvas e botinhas brancas nas patas.
Acomodada numa caixa de sapatos, e sem parar de gemer, cedo o bicho chamou a atenção do meu pai no seu escritório. Terá sido assim, desviando a atenção da sua eterna leitura, que resmungou o seu primeiro voto de desagrado pela adopção. Voto que pairaria pesando por alguns anos sob a vida da gata e sobre a minha cabeça.
Foi à noite, connosco todos de pijama à volta da cama dos meus pais, que a minha mãe conseguiu injectar um pouco de leite com uma seringa de plástico na minúscula boquinha da gatinha. E foi nessa ocasião que nós a baptizámos de "Maria Clementina", ao que a minha mãe, com o seu peculiar sentido de humor, acrescentou o apelido "Joly Braga Santos". Este foi o polémico nome da gatinha, que tanto chocaria a nossa fiel mulher-a-dias, a Lídia, senhora de profunda religiosidade e tão ciosa do seu culto mariano.
Maria Clementina cresceu em sabedoria e graça, já que de tamanho nunca foi grande coisa. Fazia grandes e repentinas corridas pela casa fora, trepava paredes e cortinados, apanhava moscas com a patinha e rebolava enrolada na minha mão mordiscando-a com pequenos coices. Adoptei-a como minha, e com o tempo a propriedade foi-me reconhecida por todos, excepto pela própria: de sesta em sesta, saltitava de colo em colo e de noite para noite aninhava-se em diferentes camas, coisa que me deixava algo despeitado e ciumento. Mas lembro-me bem de ter assistido a várias Tardes de Cinema dominicais com a Maria Clementina ronronando aninhada nas minhas pernas cruzadas. Eu esforçava-me por legitimar a minha hegemonia e assumia o árduo trabalho de criar um felino naquele terceiro andar em Campo d’Ourique: tratava do caixote renovando a serradura e cuidava da sua alimentação, surripiando os mais apetitosos restos de comida e, sempre que se proporcionava, numa ida às compras, adicionava umas latas de Kitty Cat ao carrinho. Esses dias eram especiais, pois conquistava o coração da Maria Clementina, que enquanto eu suava a abrir a lata subia pelas minhas pernas, em sonoros roncos de prazer.
Mas o facto é que a gatinha vivia lá em casa numa semi-clandestinidade, e isso era uma sombra negra na minha vida, e penso que também dos meus irmãos. Após uma primeira rejeição pela parte do meu pai, Maria Clementina conquistou-o por um curto período, quando, graciosa e ainda bebé, fazia irresistíveis brincadeiras e jogos que só a uma besta poderiam deixar indiferente. O problema adensou-se com o tempo: a gata adquiriu o vício de arranhar os sofás, crescia e perdia o encanto. O pior era quando periodicamente era acometida por umas estranhas crises que chegavam a perdurar infindáveis dias, em que “uivava” autenticamente, arrastando-se languidamente pelo chão, indiferente às nossas zangas e chamadas “à terra”. Era o cio. Por essa altura a minha mãe caíra doente, situação que perduraria por muitos anos, e por grandes que fossem as fúrias do meu pai contra o bichano, nós as crianças nunca soubemos bem como lidar com tal situação.
Aconteceu uns anos mais tarde, quando a Maria Clementina lutava com uma feia doença na pele que o veterinário e eu não conseguíamos debelar. Foi numa tarde fria de Inverno pelas vésperas de um Natal qualquer, que aquilo que eu mais temia aconteceu. A gata, numa das suas incontidas correrias, deitou a árvore de Natal ao chão, e partiu umas peças de porcelana de que o meu pai tanto gostava. Nesse dia, quando cheguei a casa, já não ouvi a sua fúria insana que ocorrera minutos antes, só os choros reprimidos das minhas irmãs. Quanto à Maria Clementina, a bronca tinha sido a gota d’água e a sentença desta vez era irremediável.
A nossa gatinha, por ordem inabalável do meu pai, foi abandonada nesse dia na rua, ali para o lado dos Bombeiros. Ainda a vi refugiar-se assustadíssima debaixo de um carro estacionado. Era a sua primeira experiência de rua.
Durante muito tempo, confundi a pena que tinha do bicho com a pena que tive de mim. Durante muito tempo, quando passava naquela esquina da Rua Correia Teles com emoções contraditórias, procurava, incrédulo, sinais da Maria Clementina. Que afinal nunca mais deu sinal de vida.
Acomodada numa caixa de sapatos, e sem parar de gemer, cedo o bicho chamou a atenção do meu pai no seu escritório. Terá sido assim, desviando a atenção da sua eterna leitura, que resmungou o seu primeiro voto de desagrado pela adopção. Voto que pairaria pesando por alguns anos sob a vida da gata e sobre a minha cabeça.
Foi à noite, connosco todos de pijama à volta da cama dos meus pais, que a minha mãe conseguiu injectar um pouco de leite com uma seringa de plástico na minúscula boquinha da gatinha. E foi nessa ocasião que nós a baptizámos de "Maria Clementina", ao que a minha mãe, com o seu peculiar sentido de humor, acrescentou o apelido "Joly Braga Santos". Este foi o polémico nome da gatinha, que tanto chocaria a nossa fiel mulher-a-dias, a Lídia, senhora de profunda religiosidade e tão ciosa do seu culto mariano.
Maria Clementina cresceu em sabedoria e graça, já que de tamanho nunca foi grande coisa. Fazia grandes e repentinas corridas pela casa fora, trepava paredes e cortinados, apanhava moscas com a patinha e rebolava enrolada na minha mão mordiscando-a com pequenos coices. Adoptei-a como minha, e com o tempo a propriedade foi-me reconhecida por todos, excepto pela própria: de sesta em sesta, saltitava de colo em colo e de noite para noite aninhava-se em diferentes camas, coisa que me deixava algo despeitado e ciumento. Mas lembro-me bem de ter assistido a várias Tardes de Cinema dominicais com a Maria Clementina ronronando aninhada nas minhas pernas cruzadas. Eu esforçava-me por legitimar a minha hegemonia e assumia o árduo trabalho de criar um felino naquele terceiro andar em Campo d’Ourique: tratava do caixote renovando a serradura e cuidava da sua alimentação, surripiando os mais apetitosos restos de comida e, sempre que se proporcionava, numa ida às compras, adicionava umas latas de Kitty Cat ao carrinho. Esses dias eram especiais, pois conquistava o coração da Maria Clementina, que enquanto eu suava a abrir a lata subia pelas minhas pernas, em sonoros roncos de prazer.
Mas o facto é que a gatinha vivia lá em casa numa semi-clandestinidade, e isso era uma sombra negra na minha vida, e penso que também dos meus irmãos. Após uma primeira rejeição pela parte do meu pai, Maria Clementina conquistou-o por um curto período, quando, graciosa e ainda bebé, fazia irresistíveis brincadeiras e jogos que só a uma besta poderiam deixar indiferente. O problema adensou-se com o tempo: a gata adquiriu o vício de arranhar os sofás, crescia e perdia o encanto. O pior era quando periodicamente era acometida por umas estranhas crises que chegavam a perdurar infindáveis dias, em que “uivava” autenticamente, arrastando-se languidamente pelo chão, indiferente às nossas zangas e chamadas “à terra”. Era o cio. Por essa altura a minha mãe caíra doente, situação que perduraria por muitos anos, e por grandes que fossem as fúrias do meu pai contra o bichano, nós as crianças nunca soubemos bem como lidar com tal situação.
Aconteceu uns anos mais tarde, quando a Maria Clementina lutava com uma feia doença na pele que o veterinário e eu não conseguíamos debelar. Foi numa tarde fria de Inverno pelas vésperas de um Natal qualquer, que aquilo que eu mais temia aconteceu. A gata, numa das suas incontidas correrias, deitou a árvore de Natal ao chão, e partiu umas peças de porcelana de que o meu pai tanto gostava. Nesse dia, quando cheguei a casa, já não ouvi a sua fúria insana que ocorrera minutos antes, só os choros reprimidos das minhas irmãs. Quanto à Maria Clementina, a bronca tinha sido a gota d’água e a sentença desta vez era irremediável.
A nossa gatinha, por ordem inabalável do meu pai, foi abandonada nesse dia na rua, ali para o lado dos Bombeiros. Ainda a vi refugiar-se assustadíssima debaixo de um carro estacionado. Era a sua primeira experiência de rua.
Durante muito tempo, confundi a pena que tinha do bicho com a pena que tive de mim. Durante muito tempo, quando passava naquela esquina da Rua Correia Teles com emoções contraditórias, procurava, incrédulo, sinais da Maria Clementina. Que afinal nunca mais deu sinal de vida.