Pequena memória de Ian Smith
No início dos anos 90 entrei no Zimbabwe com visto de turista. Assim que aterrei no aeroporto de Harare enviaram-me para os serviços de imigração: receavam que eu pretendesse ficar lá ilegalmente. Lembro-me que achei enternecedor pensarem que uma europeia quereria viver fora da lei naquelas paragens, até que percebi o que achavam que eu ia lá fazer. Contra mim ou a meu favor, a administração pública funcionava bem.
Uns passos fora do aeroporto bastaram para confirmar que aquela África não tinha nada a ver com a vizinha Zâmbia, de onde eu vinha. Crianças em uniforme a marchar pelas ruas, transportes públicos que chegavam às paragens à hora certa, jardins públicos irrepreensivelmente tratados - eu tinha caído numa Inglaterra rural, cosmopolita e preta.
O meu entrevistado, Ian Smith, morava num bairro de vivendas, nos intervalos de grandes temporadas que passava numa fazenda no Norte, com receio de que os primeiros boatos de ocupações das terras dos brancos se viessem a concretizar. Cuba tinha escolhido a vivenda em frente para instalar a sua embaixada no país.
Velho, seco, olhos azuis penetrantes, tinha o discurso amargo dos que acham que fizeram a revolução para os outros estragarem tudo.
Eu tinha lido sobre a independência unilateral da Rodésia e esperava que Ian Smith tivesse uma memória política de Portugal. E tinha. O que não esperava era a memória afectiva: na sala acanhada estilo Laura Ashley, mostrou-me a mesa de centro em mármore de Estremoz e os pratos da Vista Alegre nos nichos da parede.
Morreu ontem, na África do Sul.