sábado, outubro 13, 2007

Diário na enfermaria (2)

Só há três temas na enfermaria: a morte (como fugir dela); a dor (como evitá-la); os filhos (suspiros generalizados). O ar está tão pesado com estas preocupações que contagia as parcas visitas permitidas à tarde, e o tempo dos forasteiros é todo gasto em informações sobre tensão arterial, níveis de hemoglobina e filhos. Por isso, e também porque resolvi guardar o escasso acesso à internet para o "Diário na enfermaria", sei muito pouco sobre o que se passa no mundo e, verdadeiramente, não me interessa saber mais.
Apesar de tudo, é difícil explicar a ansiedade que toma conta de mim antes da chegada da Dona Preciosa, que acontece sempre entre as sete e meia e as oito da manhã. A Dona Preciosa já foi funcionária das limpezas do hospital, mas depois vieram ventos de modernização e ela passou a ser funcionária da empresa que limpa o hospital em outsourcing, o que não influenciou nada a rotina da Dona Preciosa, nem sei se chegou a alterar-lhe a cor da bata.
A Dona Preciosa é a minha Sky News, a minha CNN, a minha SIC Notícias, a minha TSF, o meu Correio da Manhã, o meu DN. O separador para este momento noticioso chega com o chiar lento das rodas do pesado carro que empurra, cheio de detergentes e esfregonas e, por cima dos espanadores, os caracóis brancos da Dona Preciosa numa mise fora de época a avançarem pelo corredor.
Para minha desgraça, a dona Preciosa começa sempre a limpeza do chão pela parede oposta à minha e são as ocupantes dessas camas que recebem em primeira mão os destaques mais importantes do dia. Esforço-me por conter a impaciência. Quando chega à minha cama, estão esgotadas as manchetes e as chamadas de primeira página. Mas eu preciso que a dona Preciosa me conte alguma coisa, só a mim.
- E o Nobel da Paz, Dona Preciosa? Sabe quem é que ganhou?
- Foi aquele do aquecimento. - A Dona Preciosa crava a esfregona no chão e firma-se no cabo, na posição do Infante D. Henrique nos painéis de S. Vicente - E, realmente, minha filha, está muito calor.