Cadernos de filosofia política de Adolfo Ernesto (3)
O primeiro círculo do inferno
Na filosofia política, sempre me intrigou a questão do populismo, que ficou agora mais actual com a discussão sobre o novo líder do PSD.
Nada melhor do que confrontar um especialista na matéria, pensei. No caso, dois.
A ideia de esclarecer a importante questão surgiu-me, ao saber que havia ontem uma cimeira em Lisboa, para aprovar o tratado europeu, aquele que foi rejeitado mas que agora revive como um zombie. Mas permitam-me primeiro explicar a geografia da questão, ou seja, que em termos policiais a cimeira funcionava em círculos concêntricos, com restrições cada vez mais fortes, à medida que me aproximava do centro da negociação, o núcleo onde estavam os meus especialistas, os gémeos Kaczynski, da Polónia, os dois famosos populistas que ontem consultei.
Não entro em pormenores sobre a maneira como me infiltrei através das barreiras policiais. Digo apenas que fui brilhante e corri muitos perigos.
Iludi a vigilância de 1352 polícias e cheguei a um corredor (tinham posto os polacos num canto das instalações, atrás do sol posto), onde estava o camarim dos gémeos. Mal os vi, interrompi a conversa em polaco e fui logo ao assunto, no meu melhor inglês técnico.
Um dos gémeos ainda estranhou o meu bigodinho à Hitler e a boina de Guevara, tive que explicar o meu caso de cérebro com as duas metades (esquerda e direita) fundidas.
"Precisamos de focar", disse eu. E tive de repetir, por um defeito de pronúncia, o "ou" da palavra inglesa focar tem de ser prolongado e eu disse um "fa" seco.
"Como te compreendo, Adolfo Ernesto", interrompeu o primeiro gémeo, a rir-se imenso da minha pronúncia. "Também eu sofro de um mal semelhante. Odeio os comunistas e os fascistas. É um pouco estranho, detesto-os, mas tenho tiques de ambos".
Então, entrei na questão que me trazia ali, o populismo.
O outro gémeo, que era o mais articulado, deu-me então uma grande lição de filosofia política:
"Esquece esse assunto. O populismo está a acabar. A Europa inventou um novo conceito político: o impopulismo. Estamos aqui no primeiro círculo do inferno num tal isolamento que aprovámos um tratado que, se fosse votado, era rejeitado. Passámos um dia inteiro a discutir quem ficava com o último deputado. A falar de vírgulas, com ar muito importante. O povo, no sétimo círculo do inferno, protestava, e nós, aqui mais dentro, fazíamos história, decidindo aprovar um texto que já chumbou uma vez. O tratado tinha de ser aprovado, com este nome ou outro qualquer, independentemente do que pensar a Europa real".
"Cheguei a pensar que os polacos nos iam salvar", disse eu, sagazmente.
"Não foi possível, estamos muito deprimidos. É que não aguentamos a rejeição e fomos enviados aqui para trás do sol posto. Ninguém gosta de nós, aqui no primeiro círculo. E, como somos populistas, assinámos imediatamente, rendidos aos novos ventos. O impopulismo é a verdadeira revolução desta era, como prova o vosso primeiro-ministro, que ouve cada vez menos o seu povo, que levou teimosamente até ao fim um tratado que ninguém quer e que ele jamais conseguirá explicar. Nós, os populistas, estamos ultrapassados. Finita la commedia".
Adolfo Ernesto
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