Cinema Nostalgia (6)
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Se um dos maiores atributos de um realizador é tornar imortais os seus actores, Clair tinha pelo menos esta qualidade indiscutível. Gérard sobressaía em cada cena – pela figura esguia, pelo rosto anguloso, pelo olhar tremendamente expressivo que nos transmitia a sensação de um ser atormentado pelas encruzilhadas do destino. E sobretudo pela voz – aquela dicção perfeita, que me aumentava a vontade de aprender francês. Língua fora de moda, dizem uns tantos, como se isso alguma vez fosse possível.
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Apetecia-me falar em realismo mágico a propósito deste filme se o termo não tivesse já sido apropriado até à exaustão por tudo quanto cheire a literatura latino-americana. Mas é ainda esse termo que para mim melhor define a outra película de Gérard Philipe que jamais me foge da memória: O Vagabundo dos Sonhos. Personagem errante, ao jeito de um Mersault de Albert Camus, irremediável inadaptado num universo em convulsão. Parecia deste mundo mas já não era deste mundo, o malogrado Gérard Philipe. Como Camus, como Boris Vian, como Martine Carol, sua parceira neste filme. Morrem cedo os que os deuses amam, é bem verdade.
Nunca mais voltei a vê-lo. Nem sequer nas Ligações Perigosas (com Jeanne Moreau), que viria a ser o seu filme-testamento. Mas de vez em quando escuto-o ainda. Numa velha e preciosa gravação de Pedro e o Lobo, de Prokofiev. Gérard Philipe é o narrador: entre trechos musicais que sei de cor desde criança, chega-me de novo a sua dicção perfeita, uma e outra vez, para todo o sempre, ficando a ecoar no infinito.