quarta-feira, agosto 15, 2007

Cinema Nostalgia (6)

Já aqui falei da minha actriz. Ou melhor, da primeira vez em que, muito miúdo, me apercebi da existência de uma mulher que se desdobrava de filme em filme – a inesquecível Jennifer Jones. Interpretando papéis diferentes, mas com características únicas, imutáveis. Nessa mesma altura, cinéfilo imberbe, conheci também o meu primeiro actor. Falava um idioma diferente do de Jennifer, mas tão fascinante como o dela. E com um rasgo de mistério comparável ao que a intrigante intérprete de Desde que tu Partiste irradiava no ecrã. Gérard Philipe – é dele que falo – tinha uma aura diferente dos astros de Hollywood. Talvez por ter morrido muito cedo, em circunstâncias trágicas. Parecia-me uma espécie de milagre vê-lo ali, renascido em celulóide, quase um fantasma em assombrosas sequências de chiaro-scuro, expressionistas como poucas, nos dois filmes dele que me cativaram para sempre. Eram ambos assinados por René Clair – “o mais francês dos cineastas”, como lhe chamou Georges Sadoul -, um homem que teve o mundo do espectáculo a seus pés e que as plateias de hoje praticamente ignoram.
Se um dos maiores atributos de um realizador é tornar imortais os seus actores, Clair tinha pelo menos esta qualidade indiscutível. Gérard sobressaía em cada cena – pela figura esguia, pelo rosto anguloso, pelo olhar tremendamente expressivo que nos transmitia a sensação de um ser atormentado pelas encruzilhadas do destino. E sobretudo pela voz – aquela dicção perfeita, que me aumentava a vontade de aprender francês. Língua fora de moda, dizem uns tantos, como se isso alguma vez fosse possível.


Já tinha falecido há muito, na flor da idade, quando o conheci. Primeiro ao lado de Michel Simon – outro gigante do cinema gaulês – em O Preço da Juventude, espantosa recriação do Fausto, de Goethe. Gérard, tentado pelo Mefistófoles-Simon, vendia a alma para obter a ilusão da eterna juventude. Prodigiosa ironia de que só o cinema é capaz: um actor atraiçoado pela vida encarnando na tela alguém que sobrevive a toda a erosão do tempo.
Apetecia-me falar em realismo mágico a propósito deste filme se o termo não tivesse já sido apropriado até à exaustão por tudo quanto cheire a literatura latino-americana. Mas é ainda esse termo que para mim melhor define a outra película de Gérard Philipe que jamais me foge da memória: O Vagabundo dos Sonhos. Personagem errante, ao jeito de um Mersault de Albert Camus, irremediável inadaptado num universo em convulsão. Parecia deste mundo mas já não era deste mundo, o malogrado Gérard Philipe. Como Camus, como Boris Vian, como Martine Carol, sua parceira neste filme. Morrem cedo os que os deuses amam, é bem verdade.
Nunca mais voltei a vê-lo. Nem sequer nas Ligações Perigosas (com Jeanne Moreau), que viria a ser o seu filme-testamento. Mas de vez em quando escuto-o ainda. Numa velha e preciosa gravação de Pedro e o Lobo, de Prokofiev. Gérard Philipe é o narrador: entre trechos musicais que sei de cor desde criança, chega-me de novo a sua dicção perfeita, uma e outra vez, para todo o sempre, ficando a ecoar no infinito.