Museu do cinema (III)
Este é um museu muito pessoal e nem sei bem se existe um bom critério para colocar aqui objectos. A série devia chamar-se “O Meu Museu do Cinema”. E, logo no primeiro post, a prosa devia estar centrada no filme do Bogart.
Mas eu pretendia escrever sobre Casablanca, mesmo que demorasse semanas. Não é uma obra-prima do cinema, mas um filme de cenas, com momentos sublimes, outros divertidos e ainda alguns instantes pouco sérios. A história é relativamente banal e, se não fosse pelos diálogos certeiros e, acima de tudo, a esplendorosa Bergman, Casablanca não teria o fascínio que lhe mereceu ser uma espécie de ícone da cultura contemporânea, o primeiro título que ocorre a muita gente, quando alguém quer referir um bom filme clássico.
Quem mais me fascinou, a ponto de ter escrito um romance sobre ele, é a personagem de Viktor Laszlo, o marido. Trata-se de um combatente da liberdade, uma figura algo quadrada, sem espessura. Na realidade, nunca o compreendemos. Um dia, após ver o filme, achei estranho que aquele nome, que só pode ser húngaro, seja dado a uma personagem de origem checa. Tento explicar melhor: quando Casablanca foi filmado, pretendia-se fazer um filme de propaganda, onde os nazis eram os maus (e, portanto, também os seus aliados húngaros). O realizador de Casablanca era um judeu húngaro que, nos EUA, mudou o seu nome para Michael Curtiz. Começou a carreira durante a Primeira Guerra Mundial, a fazer filmes em Budapeste, quando ali existia uma indústria emergente de alguma dimensão. Após algumas aventuras, Curtiz emigrou para os Estados Unidos e foi um dos tarimbeiros de Hollywood, um especialista em filmes de acção, com orçamentos baixos, histórias simples e ritmo eficaz. Para mais me espantar, a história de Casablanca foi escrita por um duo de irmãos, também de uma família de judeus húngaros. Enfim, para simplificar: aquele nome, Viktor Laszlo, não devia estar ali. Todos sabiam que não podia ser checo. E, se fosse checo, devia chamar-se Vaclav, ou algo semelhante.
E qual é a história de Casablanca, do ponto de vista desta personagem que não devia estar ali? O combatente da liberdade, em vez de salvar o mundo, não consegue sequer salvar o seu casamento. Existe nele um estranho desejo de sair do filme, de partir ou de morrer. Ele percebe (sabe anteriormente, mas tem de perceber no final) que a sua mulher lhe foi infiel. Depois, viajam ambos para Lisboa, para viverem o verdadeiro filme.
Qual a razão de não lhe terem mudado o nome? Haveria um Viktor Laszlo a quem aconteceu aquilo? Em resumo, a situação, em si, é de uma enorme banalidade, mas eles partem para Lisboa e é em Lisboa que saímos da fantasia Bogartiano-Bergmaniana, para entramos na inevitável realidade do autêntico Viktor Laszlo e da sua mulher. A Lisboa que está fora da guerra, mas que parou no tempo, numa ansiedade em relação ao que vem de fora.
Estas especulações foram o ponto de partida para o primeiro livro que escrevi, “O Silêncio do Vento”, um romance publicado em 1999. É por tudo isto que gosto de Casablanca. Gosto da canção, gosto de Curtiz, e daquele Viktor Laszlo que só podia ser húngaro, mas a quem ninguém se atreveu a mudar o nome, porque talvez fosse a reminiscência original do filme, o ponto de partida de uma bela amizade.