"O curioso iluminismo do professor Caritat"
«Fronteira Norte, Libertária
Queridos Justin, Marcos e Eliza
Acabam de ocorrer dois acontecimentos muito estranhos. Primeiro conheci um pássaro com quem tive uma longa conversa. Depois, vi umas pessoas que vivem em cima das árvores. Ao lerem isto vocês concluirão provavelmente que eu enloqueci, mas peço-lhes que continuem a ler porque ambos os acontecimentos me ensinaram algo que talvez lhes interesse.
Vamos primeiro ao pássaro. Era um mocho, o mocho de Minerva, e um mocho sensato, como são em geral todos os mochos. Sabia tudo sobre as minhas viagens e interpretou o significado das viagens que fiz até agora, citando a observação de Condorcet de que os ideais humanos estão interligados entre si à semelhança de uma cadeia indissolúvel. No entanto, emprestou a essa observação um sentido que nunca me tinha ocorrido. Sempre a interpretei como se exprimisse o que havia de excessivo, ou mesmo de perigoso, no optimismo do iluminismo: o sonho da perfeição, em que a verdade, a felicidade e a virtude, acabariam por convergir e deixaria de haver conflitos de valores, cessariam os dilemas morais, acabariam os confrontos entre os direitos, na haveria mais tragédias. O sonho de um mundo em que a igualdade política, o crescimento económico, uma organização eficiente e a justiça social são compatíveis entre si e com a liberdade individual universal; em que o universalismo já não colide com a particularidade, a solidariedade com a individualidade, as fidelidades públicas com as privadas. Um mundo em que a prossecução do ideal humano digno já não significa sacrificar os demais. Não é verdade que a busca dessa perfeição omniabrangente e omniconciliadora conduziu à ditadura da virtude, que matou o próprio Condorcet? Por quantas mortes e destruições não tem sido responsável desde então, e sobretudo neste século terrível? Não é verdade que o sonho se converteu num pesadelo?
E, no entanto, podemos interrogar-nos se essa esperança possui efectivamente esse poder fatal...ainda mais fatal do que as convicções sobrenaturais e atávicas contra as quais se insurgiu. Não será o fanatismo um dos traços característicos da raça humana, fanatismo esse que se apodera de todas as ideias que encontra no seu caminho, em busca das suas vítimas?
Contudo, o significado que o mocho deu à cadeia indissolúvel foi completamente diferente: traduz-se na simples ideia de que, sempre que se persegue um ideal, é desastroso perder de vista todos os outros. Fazer isso é fanatismo. Todos os países que visitei até agora são governados por fanáticos com uma visão estreita, fanáticos obcecados por uma concepção dominadora e destruidora daquilo que dá valor à vida. Todos eles sabem por que razão o melhor dos mundos tem de ser o próprio mundo. Tanto eles como os seus concidadãos são vítimas da mesma ilusão. Mesmo os poucos dissidentes que conheci pareciam ter alguma dificuldade em pensar pelas suas cabeças e verem com clareza. (...)»
Queridos Justin, Marcos e Eliza
Acabam de ocorrer dois acontecimentos muito estranhos. Primeiro conheci um pássaro com quem tive uma longa conversa. Depois, vi umas pessoas que vivem em cima das árvores. Ao lerem isto vocês concluirão provavelmente que eu enloqueci, mas peço-lhes que continuem a ler porque ambos os acontecimentos me ensinaram algo que talvez lhes interesse.
Vamos primeiro ao pássaro. Era um mocho, o mocho de Minerva, e um mocho sensato, como são em geral todos os mochos. Sabia tudo sobre as minhas viagens e interpretou o significado das viagens que fiz até agora, citando a observação de Condorcet de que os ideais humanos estão interligados entre si à semelhança de uma cadeia indissolúvel. No entanto, emprestou a essa observação um sentido que nunca me tinha ocorrido. Sempre a interpretei como se exprimisse o que havia de excessivo, ou mesmo de perigoso, no optimismo do iluminismo: o sonho da perfeição, em que a verdade, a felicidade e a virtude, acabariam por convergir e deixaria de haver conflitos de valores, cessariam os dilemas morais, acabariam os confrontos entre os direitos, na haveria mais tragédias. O sonho de um mundo em que a igualdade política, o crescimento económico, uma organização eficiente e a justiça social são compatíveis entre si e com a liberdade individual universal; em que o universalismo já não colide com a particularidade, a solidariedade com a individualidade, as fidelidades públicas com as privadas. Um mundo em que a prossecução do ideal humano digno já não significa sacrificar os demais. Não é verdade que a busca dessa perfeição omniabrangente e omniconciliadora conduziu à ditadura da virtude, que matou o próprio Condorcet? Por quantas mortes e destruições não tem sido responsável desde então, e sobretudo neste século terrível? Não é verdade que o sonho se converteu num pesadelo?
E, no entanto, podemos interrogar-nos se essa esperança possui efectivamente esse poder fatal...ainda mais fatal do que as convicções sobrenaturais e atávicas contra as quais se insurgiu. Não será o fanatismo um dos traços característicos da raça humana, fanatismo esse que se apodera de todas as ideias que encontra no seu caminho, em busca das suas vítimas?
Contudo, o significado que o mocho deu à cadeia indissolúvel foi completamente diferente: traduz-se na simples ideia de que, sempre que se persegue um ideal, é desastroso perder de vista todos os outros. Fazer isso é fanatismo. Todos os países que visitei até agora são governados por fanáticos com uma visão estreita, fanáticos obcecados por uma concepção dominadora e destruidora daquilo que dá valor à vida. Todos eles sabem por que razão o melhor dos mundos tem de ser o próprio mundo. Tanto eles como os seus concidadãos são vítimas da mesma ilusão. Mesmo os poucos dissidentes que conheci pareciam ter alguma dificuldade em pensar pelas suas cabeças e verem com clareza. (...)»
Com toda a amizade,
Nicholas Caritat
(Steven Lukes, 1995)