segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Colecção de crónicas (X)


Sempre adorei western, entre nós conhecidos por filmes de cobóis. Lembro-me muito vagamente de estar mergulhado nas imagens de um filme que passava na televisão (tenho hoje a certeza de que era Todos Morreram Calçados) e a minha mãe deve ter achado que aquilo era demasiado violento para uma criança tão pequena (que idade teria? Quatro, cinco anos) e mandou-me para a cama. Resisti como uma tribo de índios.
De certa maneira, este foi o meu primeiro western, com berrata no meio da batalha. E logo Errol Flynn, dirigido pelo húngaro Michael Curtiz, com o qual me iria cruzar mais à frente!
Cada filme de cobóis nunca é aquilo que parece. A minha primeira impressão tinha a ver com a aventura. Havia grandes espaços e muita fantasia, mas não tinha idade para perceber essas coisas. Por isso, ficaram sobretudo correrias e cavalgadas, os tiroteios e as figuras cheias de dignidade, os heróis. Sou da geração da televisão, mas conheci John Wayne cedo na minha vida. Ele faz parte da minha memória mais antiga. Como é que se diz em informática? A memória cache?
(Nome estranho, a ser esse! Pois cache lembra imediatamente aquilo que se esconde! )
Quando fizeram os grandes ciclos de cinema na Fundação (anos 30, 40, 50) eu era um chavalo à beira de se perder na loucura e na droga. Posso dizer que o cinema me salvou. Íamos para a fila da Gulbenkian ainda de madrugada e comprávamos bilhetes às dezenas. Não havia dinheiro para comprarmos tudo, mas tentávamos ver tudo.
Foi ali que eu descobri John Ford. Os filmes da cavalaria, que compreendi logo não serem apenas filmes de cobóis, mas algo mais, uma espécie de viagem poética pela paisagem de uma memória escondida, que afinal também eu ambicionava: feita de espaços e cores, o dramático cenário e as pessoas fortes, as paixões das pessoas fortes, como bem dizia um título português de outro diamante, My Darling Clementine, ainda hoje um dos meus favoritos.
Os géneros acompanham sempre os tempos, ou melhor, estes impregnam os géneros. Ninguém fez western para retratar a época da conquista ou da colonização do oeste americano, no final do século XIX. Cada período de filmes trata das questões de cada época. E assim surgiram visões amargas, anti-heróis, as linhas de sombra e ambiguidades da alma.
É por isso que também gosto de Clint Eastwood e da perfeição estilística de Sergio Leone, injustamente associado ao western spaghetti, mas na realidade um dos grandes mestres do cinema.
Nessa altura, já tínhamos deixado a perigosa fronteira entre o bem e o mal para entrarmos no espantoso território onde apenas o mal podia florescer. Mas era o nosso próprio mundo a mudar que nos permitia visualizar esses horizontes.
Mais tarde, outra obra-prima: em Imperdoável, a personagem de Eastwood procura conter a sua memória cache, escondê-la bem fundo, no antro dos seus pesadelos. E, de súbito à solta, a monstruosa maquinaria torna-se tão assustadora como o mal mais absoluto. Ao serviço da justiça, o pistoleiro não é muito mais do que uma caricatura grotesca.
Da ingenuidade de Todos Morreram Calçados ao sopro divino do mal, em Imperdoável, a viagem do western (género tão universal) é talvez o relance do nosso tempo. No cenário de sonhos, vi a busca incessante do Humano, essa condição imprecisa, que nos vai escapando no imenso palco da luz...

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