terça-feira, janeiro 23, 2007

Colecção de crónicas (VIII)



Li a história num blogue de guerra, Blackfive.net, da autoria de um militar americano que assina blackfive. A necessidade de criar um blogue surgiu, segundo conta, após saber da morte em combate de um seu amigo, o major Mathew Schram, mortalmente ferido numa emboscada, no Iraque, quando comandava uma coluna de abastecimentos. A emboscada foi clássica: os insurrectos atacaram o primeiro veículo da coluna de oito camiões e conseguiram imobilizá-lo. O oficial estava no interior da coluna, num Humvee com maior flexibilidade. Agindo com rapidez, Schram ordenou um contra-ataque, para evitar que o último veículo também fosse imobilizado. A acção deu tempo à coluna para sair do local, mas o Humvee atraiu o fogo inimigo e acabou atingido. Schram morreu nesta acção.
O que levou Blackfive a lançar o seu blogue foi o facto de também ter caído na mesma emboscada um veículo onde viajava um jornalista americano, de uma conhecida revista. A lógica da acção dos insurrectos continuava a ser a de se imobilizar o último veículo da coluna. A destruição deste, agora um carro civil, era mais fácil. O jornalista teria morrido, se não fosse a corajosa decisão de Schram de avançar contra os insurrectos no seu Humvee. Blackfive tem a certeza de que o jornalista deve a sua vida ao sacrifício do major, no entanto o nome de Schram não surgiu em nenhuma das reportagens.
Para mim, com as devidas proporções de violência, esta é uma crónica difícil de escrever. Em várias incursões em “território Comanche”, estive em perigo relativo. E não posso deixar de pensar nos acasos que me levaram a essas situações e, ao mesmo tempo, nos riscos que algumas pessoas correram para me protegerem da minha própria estupidez.
Esqueci o nome de um taxista de Bissau, uma bisarma, que me defendeu (literalmente) no funeral de Ansumane Mané, onde uma multidão enraivecida, maioritariamente muçulmana, já nem fazia esforço para conter a sua hostilidade em relação a forasteiros, nomeadamente brancos. Às tantas, eu era o único europeu no local; estava no meio de uma turba imprevisível; arriscara demasiado. E, então, quando me começava a assustar com aquilo (era indescritível) reparei no corpanzil do rapaz, que afastava gente enfurecida da minha volta, largando os braços para os lados, criando um espaço vazio. Ele era mandinga e vi-o a discutir várias vezes, na sua língua, com tipos que me olhavam como quem olha para um frango a depenar...
Já contei aqui a história de outro dos meus anjos da guarda. Infelizmente, não guardei o nome dele em nenhum apontamento. A fronteira do Koweit parecia intransponível. Enfim, passavam colunas infindas de camiões americanos (as guerras, hoje, são ganhas pela logística), mas impedia-se a passagem de civis, excepto por um ponto no deserto, que exigia GPS. Um dia conseguimos, mas sem jipe e, de facto, era suicídio tentar permanecer ali. Eu é que não sabia. Estava numa cidade iraquiana da fronteira, chamada Safwan, e pensei em permanecer no hospital (uma espécie de centro de saúde, que esvaziava à noite) até ver a cara do médico com quem conversava. Mal perguntei se podíamos pernoitar ali, ele empalideceu. Percebi de imediato, pela sua expressão, que isso era uma loucura. Só mais tarde soube que, à noite, reinava o caos mais absoluto na cidade.
A terceira pessoa que me salvou e cujo nome nunca soube foi uma mulher franzina. Decorriam eleições na Guiné e houve um incidente na estrada, com a população muito excitada por não poder votar no bairro ali perto. Estava com o Leonardo Negrão e fomos ver. Mas, de súbito, a população ficou descontrolada e um rufião começou a tentar transformar aquela simples entrevista num desafio (como se eu fosse das autoridades). Num gesto inesperado, o rapaz tirou-me o chapéu da cabeça. Não reagi nem mostrei medo, mas a situação só não degenerou porque uma mulher de aparência frágil tirou o meu chapéu das mãos do rufião e, num gesto lento, puxando-me pelo ombro, fazendo-me inclinar, colocou-o na minha cabeça, como se me coroasse. E, a partir desse momento, tão belo tinha sido o gesto, só houve sorrisos à minha volta...

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