Todos morremos a cada dia que passa
Rosyln Taber (Marilyn Monroe), desencantada da vida, interessou-se pelo único homem que, sabendo ver para além das aparências, percebeu que ela era infeliz. Percebemos isso num sublime diálogo que marca Os Inadaptados (The Misfits), obra-prima de John Huston e um dos grandes filmes dos anos 60. "És a mulher mais triste que conheço", diz-lhe ele. "És o único homem que não me diz que sou feliz", espanta-se ela. Rendida à dilacerante argúcia daquele anacrónico cowboy que faz do deserto do Nevada o seu lar iluminado por estrelas "tão longínquas que podem estar já mortas no instante em que olhamos para elas".
É ficção, claro. Mas podemos vislumbrar em tudo isto uma alegoria da própria Marilyn na fase crepuscular da sua carreira que culminaria pouco depois no mais mediático suicídio da história do cinema. É compreensível: o argumento foi escrito por Arthur Miller, casado com a actriz, e era já então evidente que o casamento estava condenado ao fracasso. Aliás, nenhum cineasta como Huston soube tão bem filmar o fracasso: é disto que se trata também em The Misfits. O próprio Gay Langland (Clark Gable), epítome do "último verdadeiro homem americano", como o descreve Isabelle Steers (Thelma Ritter), está num beco sem saída: deixou de haver lugar para pessoas como ele numa América que se despedia dos seus mitos na década de todas as convulsões. "Tenho de arranjar outra maneira de me sentir vivo, se houver alguma", confessa ele, à beira do fim. Também neste caso o filme teve carácter premonitório: Gable faleceu duas semanas após a conclusão das filmagens. Com ele morria uma era de Hollywood: o cinema clássico tornava-se moderno. Igualmente sob este prisma, Os Inadaptados decorre sob o signo da despedida.
Uma obra cinematográfica pode ser apreciada de várias maneiras, conforme as alterações registadas no nosso olhar. Só ontem, ao vê-la pela terceira vez (agora na Cinemateca), me apercebi que esta película onde não morre ninguém é afinal uma película sobre a morte - uma das mais pungentes de que há memória. Calhou olhá-la num dia muito doloroso, marcado pelo trágico desaparecimento de uma colega. E de súbito todo aquele enredo adquiriu para mim um novo sentido. É de perda que este filme nos fala, num subcontexto que o percorre por inteiro. Numa das sequências mais extraordinárias que Huston rodou, Roslyn, à distância, grita para os homens que prosseguem a absurda caça aos cavalos selvagens: "Vocês os três estão mortos!" (os outros dois, além de Gay, são Perce Howland, interpretado por Montgomery Clift, e Guido, interpretado por Eli Wallach). "Todos, homens e mulheres, estamos a morrer a cada momento que passa", lembra ela noutra cena. E Gable, quase numa frase-testamento, diz: "Um homem que tem medo de morrer tem medo de viver."
Os inadaptados eram todos eles - deserdados da fábrica de sonhos, na tela como na vida. E até que ponto não seremos também nós?
Imagem: Marilyn Monroe durante a rodagem de Os Inadaptados (1961), de John Huston