O romance é um fio de histórias
Gosto de Ohran Pamuk, pelo menos do único livro que li dele, Jardins da Memória, melancólica deambulação por uma Istambul antiga e secreta; um livro sobre o passado, sobre aquilo que está para além dos cenários que tentamos construir em torno das nossas vidas; um texto sobre o que desaparece e as verdades que escondemos.
O escritor turco fabrica uma tapeçaria de pequenas histórias e todo o conjunto ganha um esplendor próprio, quando visto sob certa luz. Este é um livro repleto de mistérios, que o autor vai revelando devagar, criando uma atmosfera onde se cruzam inúmeras vidas e personagens apenas pinceladas.
Percebi melhor a arte de Pamuk ao deparar com uma pequeníssima história no interior do romance, contada em três ou quatro linhas: a de um esquadrão de cavalaria forçado pelo racionamento do tempo da Segunda Guerra Mundial a obedecer às ordens de levar os seus cavalos até ao matadouro; a cena é contada com base no espanto dos cavalos, traídos pelos seus (camaradas? cavaleiros?). O livro está recheado de momentos assim, feitos de força e poesia.
Pamuk é um escritor político (mas há escritores que não o sejam e que valha a pena ler?). É um crítico dos rigores da república secular e combateu a ditadura. Este Prémio Nobel simboliza o aparecimento de uma nova Turquia, país que ainda não resolveu completamente as suas contradições pós-imperiais.
Servirá igualmente para estimular o debate sobre a Turquia e as fronteiras da Europa. O escritor turco mostra que Istambul é uma grande cidade europeia. Com Ancara (a capital, onde vive o resto da elite do país) a mágica metrópole soma mais de um quinto da população turca. Excluir este país da UE será um erro histórico e beneficiará aqueles que têm da Europa a visão estreita de potências à moda antiga, capazes de rivalizar com os Estados Unidos ou China.