quinta-feira, junho 15, 2006

Homenagem à vida (crónica)

Há umas semanas, numa sexta-feira, vinha eu do Algarve e pimba. Pára-me o estúpido do carro na berma da auto-estrada com a cabeça do motor queimada. “Muita sorte temos nós”, pensei, já no reboque, de carro “às costas”, ao lado de um mecânico alentejano, a 70 km/hora em direcção a Lisboa. Já quase se fazia noite e ainda tão longe de casa… Nada controlamos na vida verdadeiramente, mas tudo vai bem afinal. Seiscentos contos de arranjo, sei hoje.

Foi a cabeça do motor. Nessa noite, a minha mulher veio buscar-me à porta da oficina. Jantámos em Cascais e decidimos ir a uma farmácia tirar uma estranha dúvida... Noite dentro. Afinal somos uns jovens quarentões e temos boa idade para sairmos à noite. Os miúdos já se aguentam sozinhos.

Nas duas noites seguintes mal dormi.

Olho-a com atenção ali ao canto e vejo bem como parece uma menina. Ainda. Agora, volta tudo ao princípio. Quarenta e tal "Invernos" não apagam a luz dos seus olhos tão serenos. De onde lhe vem aquela calma? Será que não entende as aflições da nossa vida? Entende, sim. Mas não estrebucha quando não vale a pena. Vai-se embora dobrar a roupa e pronto. Agora parece-me meio ausente… Mas como ficou bonita!

Noite escura. Para além do gotejar da chuva, o silêncio é total. Eles dormem o sono dos inocentes. Há umas semanas, vinha do Algarve e pimba. Pára-me o estúpido carro na berma com a cabeça do motor queimada. Um sinal. Pensava que o meu Rover não avariava. Era só as revisões e acelerar... Agora dizem-me que é velhote, que não vale nem “para abate”.
Vamos mandar pintar o berço de ferro forjado. Nas despesas há muito por onde cortar! E cada coisa será de sua vez. Durante um ano ele vai ficar ao nosso lado, aqui no quarto. E outra vez aquele cheiro morno de casa fechada à luz do Inverno? Vai é fazer bem à Carolina. Ela quer uma menina. E se for mesmo, onde é que a pomos? Se for rapaz, é fácil: um beliche resolve o problema. Vai adormecer como tu num cestinho ao som dos Madredeus?

É tudo tão frágil… Os equilíbrios… Já se faz manhã e veio a chuva arrefecer o chão, que já se preparava para fazer das suas e incendiar o país inteiro outra vez. Assim, fica para mais tarde. Que falta faz um carro? Agora vai ter de ser de sete lugares. Os mais velhos estão contentes, para eles é tudo natural. Não lhes faltem os skates e os “fones” nas orelhas… Têm sido umas semanas “do caraças” gerindo tantas emoções... Da perdição (no meio do Alentejo, com o carro a fumegar) ao espanto das duas noites esbugalhadas, e daí à interrogação, vou aterrando na realidade. Com os projectos todos em revisão. E é da maneira que não calçamos as pantufas… Graças a Deus.

Nota: não resisti a utilizar abusivamente a fotografia da chuva do FAL.

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