segunda-feira, abril 24, 2006

O cinema independente

O festival de cinema independente Indie Lisboa é o óptimo inverso do esmagador pensamento único que caracteriza o cinema de Hollywood. Sou apreciador do cinema clássico americano, mas acho que a máquina industrial entrou numa fase de acentuada decadência, pois os filmes deixaram de ser grandes histórias para se tornarem grandes proezas técnicas ou boas ideias transformadas em algo de mais pequeno, para poderem girar em torno de um actor vedeta. Progressivamente, estão a perder-se as interpretações e os argumentos.
Por isso, eventos como o Indie Lisboa são tão importantes, pois vão contra a corrente.
Vi vários filmes, mas queria destacar dois:
Rockumentário, de Sandra Castiço, uma média metragem documental, e A Sagrada Família, uma longa metragem de ficção, do chileno Sebastián Campos.
O filme português é uma curiosa transgressão na companhia de uma banda rock, os Bunnyranch. Penso que Sandra Castiço faz aqui o retrato melancólico do País real, com enorme carinho pelas personagens que filma. Por vezes, tive a sensação de que tudo aquilo era ficcionado, de tal forma as figuras me pareciam improváveis. Há um momento tocante, quando Kaló (a figura principal) diz qualquer coisa como isto (e cito de cor): é preciso ter simpatia pelos perdedores. A ideia resume o filme, que no fundo tenta mostrar aquilo que no nosso País querem que continue invisível, varrido para debaixo do tapete, para não ferir as susceptibilidades pequeno-burguesas. Pena o som directo ter baixa qualidade, inevitável num filme de pequeno orçamento.
Classificação: ***
O filme chileno é muito literário e roda em torno de uma família. É uma história sobre o poder, na perspectiva de luta entre gerações, choque da modernidade e tirania do sexo. Sebastián Campos consegue uma brilhante análise onde o espectador adivinha muito mais do que vê na realidade. E toda a paixão é filmada com uma espécie de brandura, sem nunca cair no sentimental. Há crueldade, traição, inveja e, apesar de tudo, amor. Contradições, no fundo, porque as pessoas nunca são lineares. Os diálogos estão escritos de forma brilhante, quase numa oralidade que dá ao filme um tom de documentário, forçando o espectador a viver aquele universo. Por vezes, A Sagrada Família tem uma aspereza difícil de suportar, mas sempre sem o exagero em que tudo aquilo cairia, se fosse um filme de Hollywood. Os actores são excelentes e o maior defeito talvez seja o final, onde o realizador não nos surpreende inteiramente.
Classificação: ****