sábado, dezembro 08, 2007

Grandes contos (10): Hemingway

Existe algo a que possamos chamar o conto mais belo de sempre? Sim: é um texto que só nos fala de ilusões. Foi escrito por um americano apaixonado por Espanha e passa-se em Madrid, num dos anos mais funestos de que há memória. É um impressionante retrato de um país que não tardaria a mergulhar num dilacerante conflito cujo rasto perdura.
Falo de um conto intitulado A Capital do Mundo, que Ernest Hemingway publicou em Junho de 1936, já entre presságios da guerra civil. Toda a acção decorre no espaço fechado de uma pensão na calle San Jeronimo, perfeito microcosmos de uma Espanha em convulsão. O herói desta saga é um adolescente chamado Paco. Não poderia haver nome mais vulgar – e por isso mesmo tão simbólico. Este Paco, um miúdo órfão, veio da província em busca de um lugar ao sol na fervilhante Madrid da II República, efémera “capital do Mundo”. É na cozinha da pensão Luarca, entre panelas e pratos, que Paco dá largas à imaginação: sonha ser um toureiro, em traje de luces, aplaudido por milhares em delírio numa faiscante tarde de glória. O sonho de qualquer miúdo espanhol da época.
Os sonhos não tardaram a ruir. E nem era preciso sair da sala de refeições da pensão para perceber isso. Lá estavam dois padres galegos, pregando que “não se pode ir contra a autoridade” e ruminando contra Madrid, “que mata a Espanha”. Lá estava o empregado anarquista defendendo a vantagem de “matar cada touro e cada padre”. E lá surgiam três toureiros, ilusórios ídolos das massas: “um estava doente e tentava ocultá-lo, outro passara de moda e o terceiro era um cobarde”. Uma cornada “logo na sua primeira época de matador de cartaz” deixara-o incapaz de voltar a olhar um touro de frente. Era um drama íntimo, desconhecido das multidões – e tanto mais pungente quanto mais ele procurava disfarçá-lo naquela Espanha em que todas as aparências iludiam.
Paco bebia o ambiente circundante: “desejava ser um bom católico, um revolucionário e também gostaria de ser toureiro”. Se o destino o permitisse, haveria de conhecer tempos de triunfo, haveria de matar um miúra a las cinco en punto de la tarde.
Mas o destino não o permitiu: morreria tragicamente, naquele mesmo espaço fechado, naquela mesma noite, enquanto as irmãs mais velhas – também empregadas da pensão – viam uma decepcionante fita protagonizada por Greta Garbo num cinema da Gran Vía. Morreria com a graça e a dignidade de todos os heróis de Hemingway, personagens tocados pela tragédia. Não colhido por um touro, mas por uma traiçoeira faca de cozinha que lhe rasgou a artéria femural.
A “capital do mundo” dobrava a finados: faltava muito pouco para irromper a guerra, com o seu macabro cortejo de um milhão de vítimas. Mortes tão absurdas como a de Paco, que nunca conseguiu ser toureiro nem viu chegar a revolução libertadora que o seu colega anarquista profetizava. A Espanha moderna e cheia de luzes era afinal tão bárbara e ancestral como os espectros das telas de El Greco, era tão faminta de sangue como os grotescos vultos pintados por Goya.
Hemingway percebeu isso antes de qualquer outro nesta "exposição quase cervantina das falsas ilusões de quem vivia em Madrid durante a República", como anotou Edward Stanton – prova evidente de que os melhores escritores são também excelentes oráculos. Madrid, sim, capital do mundo. Mas de um mundo lunar onde os Pacos não viveriam para ver o raiar do sol. Um mundo povoado de sombras, prestes a desembocar num mar de cinzas. Fala-se agora tanto na necessidade de resgatar os fantasmas da guerra civil: releia-se este conto premonitório para se perceber melhor a génese desse imenso pesadelo.
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Retomo a série que havia interrompido aqui, com um conto de Sophia de Mello Breyner Andresen. Anteriormente escrevi também outro sobre Hemingway. E ainda sobre Albert Camus, Jorge Luis Borges, Raymond Carver, James Joyce, Rubem Fonseca, Vergílio Ferreira e Cardoso Pires. A série prossegue agora a um ritmo quinzenal.

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