quinta-feira, novembro 15, 2007

Estrelas de cinema (8)


A ESTRANHA EM MIM ***
Quando as estruturas do Estado falham, é moralmente aceitável, e mesmo legítimo, fazer justiça pelas minhas próprias mãos? É esta a questão central de um estimulante filme agora em cartaz entre nós – The Brave One, que recebeu em português um título bem mais interessante do que o original: A Estranha em Mim.
A “estranha” é Erica Blair, uma citadina a meio da vida, a meio da escala social, a quem um bando de energúmenos rouba para sempre a oportunidade de ser feliz. Matam-lhe o namorado, deixam-na à beira da morte. Aconteceu com ela, poderia acontecer com qualquer de nós.
A recuperação é demorada. E a Erica que sai do hospital pouco ou nada tem a ver com a Erica anterior. É uma mulher dilacerada, torturada, obcecada pela vingança. Esta obsessão amplia-se quando é confirmada a ineficácia das forças policiais.
A partir daí, passa a travar o seu combate solitário contra as forças do mal. Um combate que não a redime de nada, mas que ela executa com a voracidade de um anjo vingador. Os tempos são propícios a esta cartilha do “olho por olho, dente por dente”: só sobrevives se adoptares a conduta moral de quem te pretende destruir.
A Estranha em Mim podia ser um vulgar fita de “acção” ou de suspense feita a pensar no consumo acelerado de pipocas. Mas destaca-se da mediania em boa parte graças à interpretação de Jodie Foster, que encarna na perfeição a personagem de uma mulher dual, vítima e verduga, estigmatizada pela violência urbana hoje sem fronteiras definidas.
O carácter simbólico da trama é destacado pelo experiente realizador irlandês Neil Jordan, que nos introduz numa Nova Iorque baça e densa, quase desfocada, quase irreconhecível. A banda sonora sublinha o desenrolar do drama interior de Erica com uma intensidade semelhante à partitura composta por Bernard Herrmanm para acentuar o errante itinerário do Travis Bickle de Taxi Driver (1976) – uma longa-metragem estranhamente simétrica a esta, aliás intensificada pela aparição de Jodie Foster em ambos os filmes. Repare-se no tema “Answer”, de Sarah McLachlan: “If it takes my whole life / I won’t break, I won’t bend / It will all be worth it / Worth it in the end.”
Mas o melhor desta A Estranha em Mim – melhor ainda do que a extraordinária interpretação de Foster – é o seu subtexto, com evidentes alusões à atmosfera política e social posterior ao 11 de Setembro de 2001 e aos demónios que se soltaram nesta data, transformando a nossa vida para sempre.
Neste preciso ponto situam-se, no entanto, também alguns dos aspectos mais equívocos deste filme, que parece justificar primitivas e demenciais formas de violência em nome do instinto de sobrevivência inerente à condição humana. Neste aspecto, A Estranha em Mim tem múltiplos antecedentes, que remontam aos dirty westerns de Clint Eastwood, na pele do justiceiro implacável que chega à cidade montado num cavalo negro, à série de fitas protagonizadas nos anos 70 por Charles Bronson, vingador solitário ainda sem as circunstâncias atenuantes em vigor no mundo pós-11 de Setembro.
Nós, espectadores, tendemos a simpatizar com Erica Bain e a secundá-la nos seus propósitos de erradicar o mal daquela cidade (de todas as cidades) patrulhada por uma legião de polícias impotentes. Mas o que sucederá quando ela amanhã deixar de matar por vingança e passar a matar por prazer, tornando-se igual aos energúmenos que hoje persegue?
Eis uma pista que o filme abre sem resolver. E é preocupante a propositada ambiguidade em que nos deixa.

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