domingo, outubro 07, 2007

Um passeio em família

Às vezes temos que forçar a barra e arrancar a família inteira de casa para um programa cultural. Tendo crescido em Lisboa, sempre convivi quase organicamente com a história e os seus monumentos. Agora que vivo no Estoril, num agradável ambiente misto de balnear e suburbano, esse relacionamento mudou. Conhecer e dar a conhecer o património histórico tornou-se uma tarefa. Aqui, sem a nossa intervenção, para além de meia dúzia de excursões escolares, tipo "museu do brinquedo", os jovens correm o risco de chegarem à maioridade apenas conhecendo a praia, o liceu e, vá lá, as arcadas do Estoril.
Vivemos a dois passos do sopé da Serra de Sintra, e há algum tempo que arquitectava uma visita familiar ao Palácio da Pena. Eu próprio não me lembro de alguma vez ter lá entrado. Para mais há alguns anos que a minha leitura encalhou no século XIX, e muitas das linhas versaram as existências dos habitantes daquela residência real. Depois parece-me da mais elementar pedagogia arrancar os miúdos às suas indolentes rotinas: os skates, os "sms" ou as Barbies. Não sem um ou outro amuo pelo meio, interditados temporariamente os "sms" (uma doença!), lá nos enfiámos todos na carrinha, mais ao Zé Maria e a sua cadeirinha.
Estranho, como nos habituamos a viver ao lado de coisas tão bonitas sem olhar bem para elas. Tantas vezes que me desloquei a Sintra, no tempo dos hotéis, entre Seteais e o outro. Nas circunstâncias deste passeio, com os olhos mais perto do coração a perspectiva do lugar é completamente diversa. Subimos até ao castelo dos mouros embasbacados com aquela luxuriante vegetação. Fez bem aos miúdos mais velhos o desafio de ajudarem a empurrar o carrinho de bebé naqueles paralelepípedos centenários. Nada como um pouco de suor para atenuar qualquer conflito de gerações. A meio do caminho já éramos uma família unida.
Percebe-se facilmente a atracção que Sintra exerce sobre reis e príncipes, ou por sensibilidades de excepção. Como era o caso de D. Fernando II, o nosso ilustrado e romântico rei, que para nossa sorte empreendeu a reconstrução do arruinado convento de S. Jerónimo tornando-o num exótico palácio, ociosa residência dos monarcas liberais. Resgatado à Condessa d’ Edla pelo rei D. Luis, o edifício foi classificado monumento nacional no fatídico reinado de D. Manuel II. Estranho edifício este, qual palácio encantado do Tritão, no pináculo dum autêntico “bosque escuro” de fadas, amantes e duendes. Por mim, encantei-me com o Retábulo da capela, e comovi-me com os detalhes mobiliários e objectos utilitários dos aposentos de D. Carlos.
A miúda pequena saltitou alegre pelos claustros, num Palácio de verdade, tão parecido com os dos seus contos animados. Deve ter-se imaginado no meio das suas princesas bailarinas e com os seus pégasos mágicos. A certa altura confidenciou-me a sua estranheza por o palácio “estar sujo”, apontando para uma mancha de humidade no alto do tecto em abóbada. Difícil é explicar-lhe a diferença deste com os castelos dos seus filmes cor-de-rosa. É a trágica disparidade da idealização ingénua, com a dramática realidade crua, que aliada ao tempo, tudo deteriora e corrompe. Que nos mata todos um pouco a cada dia que passa.
No final, enquanto o pessoal do Palácio debandava atabalhoadamente, trancando portas e janelas, ainda arranjámos uma mesa para o lanche do Zé Maria, no terraço junto às cozinhas, onde ainda nos fizeram o favor de nos vender 250 cl de água por 1,50 €.
Finalmente lá fomos nós serpenteando estrada a baixo, os dois jovens adolescentes à dianteira, excepcionalmente cúmplices, no meio daquela densa e verdejante vegetação. A jornada terminou com chave de ouro: queijadas frescas e travesseiros saídos do forno, num inolvidável lanche na Casa do Preto, que com um nome destes qualquer dia a ASAE ainda manda fechar. A experiência foi aprovada, e por uma tarde tirámos Sintra do bilhete postal.

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