quarta-feira, outubro 24, 2007

Cadernos de Filosofia Política de Adolfo Ernesto (IV)



O meu amigo Mike


Fui ver a ante-estreia do último filme do meu amigo Mike, Sicko, sobre o estado deplorável a que chegou o sistema de saúde americano. O meu lado guevarista exultava e, claro, a minha metade hitleriana estava feliz, por a América entrar em crise.
As luzes ainda estavam acesas, lá estava o meu amigo, a ocupar duas cadeiras e a dizer a toda a gente:
Hello, I’m Michael Moore, the pain-in-the-ass movie director”.
Aproximei-me. Ele fez uma grande festa:
How are you, Adolphe Ernest?”, perguntou, naquele vozeirão.
I’m in the biggest”, disse eu, no meu beautiful english.
And your lovely girlfriend?”
“Still good as the corn”.
Give me a hug”.
O Mike avançou, agarrou-se a mim, mas como é uma bisarma esmagou-me duas costelas, num abraço fraterno que também me torceu uma vértebra.
Fiquei dorido, sem fôlego. Tive de ser retirado da sala, com dores horríveis, acompanhado pelo Mike, que não parecia preocupado. Ele disse que não havia problema, pois Portugal tem um sistema de saúde universal e gratuito e, por isso, uma lesão destas não seria caso para tanta preocupação da minha parte:
In the states you would pay 600 thousand bucks for that, man”.
Ainda fiquei mais aflito. Coitados dos americanos.
Chamámos uma ambulância dos bombeiros e o Mike ficou muito excitado com aquilo de serem bombeiros e quis que eles se alinhassem numa formatura, para ver como eram os bombeiros portugueses, esses heróis. A cerimónia durou bastante tempo. O Mike distribuiu medalhas, houve lágrimas por causa do 11 de Setembro. As minhas dores aumentavam. Gemi, para ver se alguém me levava ao hospital.
Lembrei-me de um truque que vira em Casablanca, o filme:
What watch?”, perguntei, para ver se eles percebiam que se fazia tarde.
Ten watch”, informou um bombeiro.
Such much?”, três gargalhadas depois estava prestes a entrar em coma. Finalmente, recebi a atenção que merecia.
Fomos até ao centro de saúde do meu bairro. O elevador estava avariado e tivemos de subir quatro andares a pé. As dores aumentavam. Lá em cima, quando perguntei pelo médico de família, a funcionária desatou a rir-se.
“Não vejo o doutor há dois meses”.
O Mike só dizia:
You guys have a great system. Mr. Bush should see this. You don’t pay”.
Tentei explicar-lhe que não havia médico, mas ele tinha resposta para tudo:
You must bring some cubans”.
Afinal, estávamos também no sítio errado. De acordo com os dados do meu cartão de utente, eu estava no sítio errado. Para aquele problema, teria de atravessar a cidade.
“Mas, os bombeiros já se foram embora...”
Those heroes...”
“Que quer que lhe faça”, disse a funcionária, “apanhe um táxi”.
Estávamos ali num impasse, quando o Mike começou a vestir uma luvas cirúrgicas, enquanto me dizia que, durante as rodagens do seu novo filme, tinha aprendido muito sobre medicina. Os tipos fartam-se de fazer dinheiro, com isso, explicou ainda.
Não posso dizer que o tratamento de emergência tenha sido suave, ou algo assim. Foi duro, mas salvou-me a vida. O Mike é um amigo catita. Um compincha. Depois, apanhámos um táxi e fomos ao tal hospital, para os pensos. Recebi umas aspirinas, fui mandado para casa e, como não tinha dinheiro para as taxas moderadoras, o Mike teve de pagar. Ele estava furibundo. Um escândalo, gritava.
And this is a socialist country! Outrageous!”


Adolfo Ernesto

Etiquetas: