Cinema Nostalgia (8)
Cinema é festa. E às vezes a festa espreitava em frestas do quotidiano, nos longos serões tropicais sulcados de sons nocturnos: o vagido do morcego, o grunhido da osga, o zumbido de besouros em demanda de luz. Era uma festa quando o meu pai instalava o projector de super 8 e exibia filmes para nós, garotos sem televisão, ávidos de ver imagens em movimento. Vinham colegas da escola, juntávamo-nos a beber limonada, indiferentes ao toqué na parede que acabava de engolir mais um mosquito – o grande lagarto pintalgado cuja presença, acreditavam os velhos em Díli, dava sorte às casas que os acolhiam.
Noite mansa no amplo bairro do Farol – o oceano, pacífico, alongava-se em frente. Barcos artesanais de pescadores rumavam ao largo, na sua faina diária. Havia vagas luzes de petromax em Ataúro, várias milhas náuticas adiante. Mas na varanda que circundava a moradia os olhos infantis só estavam concentrados na tela onde desfilavam as imagens. Filmes em super 8: pequenas bobinas extraídas de caixas quadrangulares e que se fixavam na parte mais recuada do projector. Começavam a girar e o cinema acendia-se na varanda, sob a ritmada vigilância das ventoinhas de tecto que mal disfarçavam o calor repassado de humidade. No chão, pivetes de incenso procuravam pôr os insectos à distância, empurrando-os na direcção das osgas e do tranquilo toqué que parecia petrificado, as ventosas das patas bem fixadas nas paredes.
O stock era limitado: mas revíamos sempre cada filmezinho ou cada documentário como se fosse a primeira vez. Uma versão condensada d' O Homem Invisível, de James Whalen: ainda hoje sinto um ligeiro arrepio quando recordo Claude Rains a tirar as insólitas ligaduras que lhe cobriam o rosto. Rio Grande, em formato pequeno. Lá surgia John Wayne de bigode e farda confederada despedindo-se da inconsolável Maureen O’Hara. Os Harlem Globettroters fazendo acrobacias nunca vistas em recintos de basquetebol. Os golos de Pelé e Jairzinho no inesquecível Campeonato do Mundo de 1970.
E havia os desenhos animados. O imparável Woody Woodpecker, esse endiabrado picapau que fez as delícias da minha infância. Speedy Gonzalez, o rato que corria mais rápido do que a própria sombra. Dick Tracy, o detective que solucionava todos os casos enquanto falava ao telefone com o relógio de pulso.
E havia as velhas comédias mudas, do tempo em que se usava pêra e cartola, que uma vez e outra e outra nos faziam irromper em gargalhadas. A luz projectava-se no ecrã branco, a bobina começava a girar e aparecia o rosto familiar de Charlot comendo sempre a mesma bota que já comera em tantas outras noites. Ou os inconfundíveis Bucha e Estica, que levavam o caos à mais pacífica das ruas, pondo impávidos cidadãos à batatada. E pondo-nos a rir até às lágrimas, apesar de sabermos cada cena de cor. Absurdamente felizes sem sabermos que o éramos – putos europeus longe do conforto europeu, nessas horas longínquas em que o Super 8 substituía os canais televisivos que não chegavam a Timor. E em que o popular projector fazia parte da mobília – e da família.
Por vezes sinto uma nostalgia imensa dessas improvisadas noites cinéfilas. E do toqué lá de casa. E daquelas ventoinhas que rodavam no tecto enquanto o Dick Tracy, o John Wayne e Laurel&Hardy alimentavam sem cessar os nossos sonhos.
Noite mansa no amplo bairro do Farol – o oceano, pacífico, alongava-se em frente. Barcos artesanais de pescadores rumavam ao largo, na sua faina diária. Havia vagas luzes de petromax em Ataúro, várias milhas náuticas adiante. Mas na varanda que circundava a moradia os olhos infantis só estavam concentrados na tela onde desfilavam as imagens. Filmes em super 8: pequenas bobinas extraídas de caixas quadrangulares e que se fixavam na parte mais recuada do projector. Começavam a girar e o cinema acendia-se na varanda, sob a ritmada vigilância das ventoinhas de tecto que mal disfarçavam o calor repassado de humidade. No chão, pivetes de incenso procuravam pôr os insectos à distância, empurrando-os na direcção das osgas e do tranquilo toqué que parecia petrificado, as ventosas das patas bem fixadas nas paredes.
O stock era limitado: mas revíamos sempre cada filmezinho ou cada documentário como se fosse a primeira vez. Uma versão condensada d' O Homem Invisível, de James Whalen: ainda hoje sinto um ligeiro arrepio quando recordo Claude Rains a tirar as insólitas ligaduras que lhe cobriam o rosto. Rio Grande, em formato pequeno. Lá surgia John Wayne de bigode e farda confederada despedindo-se da inconsolável Maureen O’Hara. Os Harlem Globettroters fazendo acrobacias nunca vistas em recintos de basquetebol. Os golos de Pelé e Jairzinho no inesquecível Campeonato do Mundo de 1970.
E havia os desenhos animados. O imparável Woody Woodpecker, esse endiabrado picapau que fez as delícias da minha infância. Speedy Gonzalez, o rato que corria mais rápido do que a própria sombra. Dick Tracy, o detective que solucionava todos os casos enquanto falava ao telefone com o relógio de pulso.
E havia as velhas comédias mudas, do tempo em que se usava pêra e cartola, que uma vez e outra e outra nos faziam irromper em gargalhadas. A luz projectava-se no ecrã branco, a bobina começava a girar e aparecia o rosto familiar de Charlot comendo sempre a mesma bota que já comera em tantas outras noites. Ou os inconfundíveis Bucha e Estica, que levavam o caos à mais pacífica das ruas, pondo impávidos cidadãos à batatada. E pondo-nos a rir até às lágrimas, apesar de sabermos cada cena de cor. Absurdamente felizes sem sabermos que o éramos – putos europeus longe do conforto europeu, nessas horas longínquas em que o Super 8 substituía os canais televisivos que não chegavam a Timor. E em que o popular projector fazia parte da mobília – e da família.
Por vezes sinto uma nostalgia imensa dessas improvisadas noites cinéfilas. E do toqué lá de casa. E daquelas ventoinhas que rodavam no tecto enquanto o Dick Tracy, o John Wayne e Laurel&Hardy alimentavam sem cessar os nossos sonhos.