sábado, fevereiro 10, 2007

Colecção de crónicas (IX)

Há uma espécie de febre contagiosa que nos faz não suportar que alguém nos ultrapasse. Não é bem inveja. A inveja é uma paixão muito perigosa, enquanto isto de que falo não passa de uma reacção inócua, pouco reflectida e quase infantil.
Um dia fui ao supermercado, com a lista de compras e a missão muito particular de não me esquecer do pão. Disciplinadamente, esperei a saída de uma nova fornada. Pairava no ar um cheiro delicioso e, enquanto aguardava a vez, juntou-se nas redondezas um grupo largo de gente, que se entreolhava com desconfiança, também à espera da saída do pão acabado de cozer no forno.
À medida que crescia o odor requintado, picando a fome (palavra imperfeita para essa ansiedade que ia dominando as personagens), aumentava também a desconfiança entre as pessoas daquele grupo de desconhecidos, enfim, de vizinhos, nenhum deles com aspecto de viver carências. E, quando os empregados do supermercado colocaram a fornada à disposição dos clientes, houve um momento de descalabro daquela espécie de sociedade ainda composta. Cada um correu para apanhar o máximo de pão escaldante. Não posso dizer que houvesse encontrões significativos ou cotoveladas, mas ocorreu uma quase luta, duas mãos que agarravam ao mesmo tempo um só embrulho, olhares cruzados que mal dissimulavam fúria, o passo mais veloz na direcção do alvo, como se a caça pudesse espantar-se, esconder-se atrás das prateleiras altas.
Não pense o leitor que fui virtuoso. Também reclamei a minha dose de pão quente.
O que pretendo com esta crónica não é criticar o humano e concluir dizendo que devíamos ser mais pacientes, que devíamos aprender a partilhar, pelo menos com os da nossa comunidade. Tudo isso é evidente. Mas penso por vezes neste episódio. Não na perspectiva de lamentar as minhas falhas, que lamento, mas na perspectiva da fragilidade do nosso verniz.
As pessoas corriam para agarrar o pão, que teria sobrado para uma multidão dez vezes maior. Ninguém pensou em passar fome, ou algo dramático. O gesto colectivo de correr foi um movimento competitivo. Aquelas almas perdidas de si próprias tinham sido transformadas por leves segundos em seres sem o embrulho sofisticado de qualquer civilização.
Depois, quando caíram de novo em si, as pessoas afastaram-se umas das outras, talvez um pouco envergonhadas. Tentavam ainda esconder o pão muito quente e que largava um cheiro divinal.

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