Dona Deolinda
O atelier ficava no primeiro andar, a sala de provas no quarto ao lado. Dona Deolinda, a costureira, recebia clientes e aprendizes com um sorriso. Foi assim que me recebeu, num Verão de tédio, quando me apresentei para aprender costura. Atrás da sua velha máquina Singer, percebeu depressa que nunca faria de mim uma profissional, mas não me enjeitou. Por boa educação, por simpatia.
A dona Deolinda era uma senhora. No trato, no modo de vestir, na forma de viver. E conhecia-me. A rapariga de 15 anos, sem préstimo, que fazia um esforço para coser bainhas e pregar botões. Todas as tardes, de segunda à sexta, subia o beco para aprender a arte do ofício. E lá passava as horas. Sentada, com as mãos transpiradas pelo nervoso, picando os dedos com a agulha.
Não tinha futuro. Via-se. No atelier ninguém desarmava. "Até não está mal", dizia a costureira, diziam as minhas duas companheiras de aprendizagem. Com piedade, pois gostavam de mim. E eu delas. Admirava a forma como cosiam, como colavam a entretela nos casacos, pregavam botões e fechos.
O ambiente, com retalhos de tecido no soalho e o armário cheio de roupa em construção, era animado pelas conversas. Da dona Deolinda, das clientes, das pessoas que entravam e saíam daquele quarto no primeiro andar de uma casa de sobrado. Falava-se. Da vida, das raparigas que entravam para casar, dos noivados desfeitos, as gravidezes inesperadas, de doenças e desgostos.
Com regras, que nenhum negócio se mantém com indiscrições. Entre alinhavos e acertos, a dona Deolinda ouvia confidências, lamentos, desabafos. E guardava segredo. Tinha nome, prestígio e um sorriso que nunca desarmava. Nem mesmo comigo, a quem a Natureza não favorecera com talento para a costura.
Mas eu gostava das tardes. De andar por ali, de varrer o chão às sextas-feiras, de limpar o pó ao parapeito da janela, onde se arrumavam a almofadinha dos alfinetes e os carrinhos de linhas. E não perdia o momento de engomar e embrulhar em papel de seda os vestidos acabados de fazer. Sem vincos, imaculados, com a conta presa por um alfinete.
O orçamento curto, em letra inclinada da terceira classe. Com total e parcelas, mão-de-obra e acabamentos. As aprendizes, como eu, tinham desconto e, por isso, nesse Verão acertei saias e blusas. Inspiradas nas Burdas, as revistas de modas alemãs que abundavam no atelier.
Não sei se era mais caro ou mais barato do que as lojas de pronto-a-vestir. Talvez fosse mania minha. Delírio de quem acalentava o sonho improvável de fazer a própria roupa. Ou quem sabe se tinha já a percepção de um mundo que morria com a minha infância.
A dona Deolinda era a última das costureiras da vizinhança, a última a ter atelier e aprendizes, vestidos embrulhados em papel de seda e contas presas por alfinete. O derradeiro lugar de um certo modo de vida. Das roupas feitas por medida para casamentos, baptizados e as festas da paróquia. Com provas e tecidos que duravam anos.
Um mundo e um tempo que tive o privilégio de habitar nesse Verão de tédio dos meus 15 anos.
(Esta crónica foi publicada no DN-Madeira)
A dona Deolinda era uma senhora. No trato, no modo de vestir, na forma de viver. E conhecia-me. A rapariga de 15 anos, sem préstimo, que fazia um esforço para coser bainhas e pregar botões. Todas as tardes, de segunda à sexta, subia o beco para aprender a arte do ofício. E lá passava as horas. Sentada, com as mãos transpiradas pelo nervoso, picando os dedos com a agulha.
Não tinha futuro. Via-se. No atelier ninguém desarmava. "Até não está mal", dizia a costureira, diziam as minhas duas companheiras de aprendizagem. Com piedade, pois gostavam de mim. E eu delas. Admirava a forma como cosiam, como colavam a entretela nos casacos, pregavam botões e fechos.
O ambiente, com retalhos de tecido no soalho e o armário cheio de roupa em construção, era animado pelas conversas. Da dona Deolinda, das clientes, das pessoas que entravam e saíam daquele quarto no primeiro andar de uma casa de sobrado. Falava-se. Da vida, das raparigas que entravam para casar, dos noivados desfeitos, as gravidezes inesperadas, de doenças e desgostos.
Com regras, que nenhum negócio se mantém com indiscrições. Entre alinhavos e acertos, a dona Deolinda ouvia confidências, lamentos, desabafos. E guardava segredo. Tinha nome, prestígio e um sorriso que nunca desarmava. Nem mesmo comigo, a quem a Natureza não favorecera com talento para a costura.
Mas eu gostava das tardes. De andar por ali, de varrer o chão às sextas-feiras, de limpar o pó ao parapeito da janela, onde se arrumavam a almofadinha dos alfinetes e os carrinhos de linhas. E não perdia o momento de engomar e embrulhar em papel de seda os vestidos acabados de fazer. Sem vincos, imaculados, com a conta presa por um alfinete.
O orçamento curto, em letra inclinada da terceira classe. Com total e parcelas, mão-de-obra e acabamentos. As aprendizes, como eu, tinham desconto e, por isso, nesse Verão acertei saias e blusas. Inspiradas nas Burdas, as revistas de modas alemãs que abundavam no atelier.
Não sei se era mais caro ou mais barato do que as lojas de pronto-a-vestir. Talvez fosse mania minha. Delírio de quem acalentava o sonho improvável de fazer a própria roupa. Ou quem sabe se tinha já a percepção de um mundo que morria com a minha infância.
A dona Deolinda era a última das costureiras da vizinhança, a última a ter atelier e aprendizes, vestidos embrulhados em papel de seda e contas presas por alfinete. O derradeiro lugar de um certo modo de vida. Das roupas feitas por medida para casamentos, baptizados e as festas da paróquia. Com provas e tecidos que duravam anos.
Um mundo e um tempo que tive o privilégio de habitar nesse Verão de tédio dos meus 15 anos.
(Esta crónica foi publicada no DN-Madeira)