sábado, janeiro 20, 2007

Colecção de crónicas (VII)



Talvez a arte da colecção venha desse impulso tão humano de tentar encontrar uma ordem no universo. Sendo assim, pareço mais do lado da desordem.
Como prova esta minha colecção de crónicas, nunca fui bom coleccionador. No fundo, por vezes sonho em ter uma belíssima colecção de borboletas exóticas, mas teria imensa pena de as trespassar com alfinetes; talvez belos cristais raros ou conchas ou ainda pequenos objectos que as minhas gatas não conseguissem destruir, em voo picado.
Mas houve aquele momento decisivo, que me tornou um mau praticante desta arte. Do trauma recordo sobretudo que ia a correr, ladeira acima, feito tonto, num entusiasmo saltitante, mostrando a todo o universo a minha nota de vinte escudos, que serviria para comprar a primeira carteira de selos, o início da minha esplendorosa colecção. Faltavam uns duzentos metros quando me saem ao caminho dois matulões de um metro e quarenta (eu teria um metro e trinta, no máximo) que me arrancaram a nota de vinte escudos da mão [na realidade, ela já ia quase esvoaçando, desorbitada, tão pouco segura estava nos meus dedos pequenos, aos pulos na atmosfera, de tanta alegria]. Os meliantes fugiram de TGV, pernas para que vos quero, embora eu não constituísse ameaça, senão para o próprio. E assim ruiu em lágrimas e raiva o meu primeiro verdadeiro sonho de coleccionador.
Pensando bem, talvez não fosse o primeiro sonho. Quando ainda só media um metro e quinze centímetros, tive um episódico fascínio por insectos de tipo barata, que recrutava para constituir uma equipa astronáutica. À época, havia enorme entusiasmo por foguetes e um primo meu, hoje engenheiro, construía verdadeiros foguetões espaciais, que lançávamos de verdade. Eu, os meus primos e irmãos. [Foi por milagre que não provocámos um incêndio florestal ou que ninguém perdeu um braço]. Os lançamentos, nos quais era usado um combustível sólido à base de pólvora foram êxitos relativos, mas nenhuma das baratas-tripulantes sobreviveu, pelo que fracassámos no nosso objectivo de sermos as primeiras crianças a colocarem uma barata em órbita.
Numa noite, vimos pela televisão a chegada dos astronautas americanos à Lua. Era tarde e eu adormeci antes do acontecimento, pelo que não me lembro da alunagem e do desembarque. Só me recordo, com exactidão, da extraordinária quebra de rotina: na aldeia onde a minha avó era professora, o único televisor estava em casa de um senhor que tinha emigrado para o Brasil, ali havia enriquecido, para então regressar à terra. Foi lá que vimos o grande acontecimento, até altas horas da madrugada. Depois, o regresso a casa, já muito tarde. Não sei se é recordação autêntica ou mistura com sensações de outras noites, mas lembro-me da estrada de macadame a brilhar, da luz que a Lua reflectia. E, ao olhar para cima, quase que se podia arrancar da tela nocturna aquela meia bola pálida, sobre a qual alguns homens andavam, em curtos e graciosos saltinhos, como que entretidos em brincadeiras infantis. A estrada, essa, entrava na noite alguns metros mais à frente, uma noite densa e florestal, que tinha inclusivamente lobos e outras assustadoras almas à solta, na desordem imensa da escuridão...

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