Colecção de crónicas (V)
O homem cambaleou num centro comercial repleto. A multidão ficou a olhar, a princípio indiferente. Então, o jovem caiu no chão, largando um estranho grito animal. Depois, ergueu-se e caminhou ao acaso. Estava exangue e mantinha equilíbrio precário, passo bêbado, embora se percebesse, pelos gestos erráticos do corpo, que não estava embriagado. Era mais grave. A princípio, ninguém se mexeu. Depois, alguém que estava próximo levantou-se e ficou ali perto, na expectativa. E foi nesse instante que o corpo ruiu, como se o esqueleto tivesse passado ao estado líquido. E, no chão, amparado, o homem berrava, embora não fosse de dor.
A vítima foi socorrida. As testemunhas agiram de forma correcta, partindo do pressuposto de um ataque epiléptico. O doente foi estabilizado e depois levado para o hospital.
O que mais me impressionou neste pequeno episódio foi a aflição sincera de algumas pessoas no local e o meu próprio sentimento de culpa por não estar a fazer nada pela vítima.
E pensei que a nossa vida é feita de insignificâncias, dramas a que damos demasiada importância e onde perdemos excesso de energia. Andamos envolvidos em conflitos efémeros. Quase sempre os nossos dias são gastos em sequências monótonas de rotinas previsíveis. De súbito, deparamo-nos com o inesperado e todas as certezas tremem.
Há anos, em Bissau, estava com colegas a jantar num restaurante que tinha acabado de reabrir, com grande esforço dos proprietários. Não me recordo da sequência exacta, mas tinha passado todo o perigo (confusões político-militares) e estávamos descontraídos, em plena rotina. Havia seis à mesa. Então, entrou um tipo enorme (um armário com dois metros), cara de poucos-amigos. Sem transição, sem aviso, o gigante caiu em cima de nós. Voaram pratos e copos e foram precisos cinco ou seis matulões para o agarrar. A força com que se agitava era quase sobrenatural. Os proprietários expulsaram-no, explicando que era um louco que atacava sem motivo qualquer branco que visse à frente. Acho que ficámos bastante pálidos, muito mais do que gostaríamos. Quando saímos do local, Bissau estava mergulhada na escuridão e tudo aquilo era ainda mais assustador do que o habitual. Em cada canto escuro havia novas ameaças, até então desconhecidas. A má sensação prolongou-se por dias. A noite pode ser bem insensata.
Na Guiné, onde todos se habituaram à desgraça e à morte, havia medo supersticioso da loucura. Os loucos deambulavam pela cidade, aos gritos, e podiam dizer tudo e fazer tudo, que ninguém lhes tocava. As pessoas afastavam-se, apenas isso.
Em certas circunstâncias, que felizmente não imaginamos, pode haver previsibilidade na loucura. E a morte assume-se como a verdadeira rotina.
Mas devemos ver as coisas de outra forma: se há muito de absurdamente errado com os seres humanos, também existe o lado positivo, que nos afasta da indiferença.
A invulgar queda de um homem, perante dezenas de testemunhas, foi um momento em que cada um se esforçou por mostrar a sua faceta mais humana. O primeiro instinto foi o de ajudar, mesmo os que sabiam ser ineptos. Uma parte de nós sentiu interesse mórbido, mas houve sobretudo preocupação genuína.
No quotidiano, as pessoas comportam-se geralmente de forma estúpida: somos egoístas, competitivos, atropelamos facilmente as nossas convicções. E, apesar de tudo, como é possível descrer da Humanidade, se também tentamos ser generosos nos momentos decisivos?
Imagem: Jakob Steinhardt (1923)
Etiquetas: Crónicas