sábado, janeiro 06, 2007

Colecção de crónicas (IV)



A belíssima crónica que a Marta nos deixou aqui, ontem, sobre Miguel Strogoff e outros, causou-me forte impressão, talvez por também andar a escrever e ler sobre o tema da memória.
(Peço antecipadamente desculpa ao leitor, mas este texto vai exigir algum esforço de leitura, pois quero colocar aqui uma catadupa de ideias e isso não será possível sem haver extrema falta de clareza).
O melhor texto que jamais li num jornal era sobre o tema da memória. Digo que era o melhor texto porque foi o único, até agora, num jornal, que me produziu tão forte emoção que comecei a chorar. Não era lamecha, ou algo do género, antes uma reportagem sem mácula, apenas factos, frases contidas e palavras precisas. Não havia espaço e o repórter (não era simples repórter, mas um mestre, chamado Viale Moutinho) tinha de escrever sobre um assunto onde tudo parecia estar dito. O curto texto foi publicado no DN e mal paginado. O assunto era um caso famoso, ocorrido em Amarante, onde vários homens e mulheres morreram num clube nocturno, em incêndio provocado. Viale Moutinho pegava na história de uma das vítimas, uma rapariga, de quem toda a gente se começava a esquecer. Bonita, jovem, tinha olhos verdes, diziam. E isto era tudo o que as pessoas conseguiam afirmar sobre ela. E como era? E seguia-se um vago simpática que nada acrescentava. E outros aspectos? A cor do cabelo? E ninguém conseguia precisar. E objectos pessoais, imagens? Não restava nada. Era como se uma vida inteira não tivesse deixado rasto, excepto aqueles olhos verdes...
A reportagem de que vos falo rivaliza com uma outra, que li no New York Times, há uns anos, sobre um crime. Um homem ciumento matara a amante em plena rua, enquanto as pessoas faziam as suas compras. A história era tão pormenorizada que tudo aquilo se movia, como se as personagens do drama ganhassem de repente uma densidade física que as fazia deslocar no espaço e no tempo, apenas durante aqueles segundos decisivos, que tantas testemunhas tinham observado, e de tantos pontos de vista. Mas, no fim, após todos os factos, ficava um vazio de incompreensão. Porque razão tinham aquelas pessoas agido daquela forma? E era esta incerteza não escrita que tomava conta do texto. Que loucura atravessara o drama?
E, agora, tantas palavras escritas, dou-me conta de que os parágrafos correm e ainda nem entrei no que queria...
O tempo é algo que tomba numa cascata e as ideias pregam rasteiras umas às outras, para ganharem protagonismo...
No domingo, havia uma multidão a fazer compras, um sol glorioso em Lisboa. Subia uma rua, quando uma velhinha muito velhinha veio ter comigo. O senhor desculpe, pode ajudar-me? Claro, disse eu. E reparei que, atrás, sorria a jovem acompanhante. E a idosa explicou-me uma situação incoerente, em tom dramático. Podia chamar a polícia? Tentei argumentar, que talvez não fosse necessário, mas íamos chamar já, o caso resolvia-se. A acompanhante era uma brasileira que, sorrindo, com extrema paciência, ia explicando que a senhora esperara visitas de familiares, mas eles não tinham vindo. Por isso, estava desorientada. E ficámos ali os três, durante um tempo, a dizer disparates, a acalmar a senhora, que acabou por regressar a casa, já mais tranquila. Estava uma tarde magnífica para passear, declinava o sol de inverno...
Quando cheguei a minha casa, comecei a escrever um conto, que está a ser publicado aqui. Um Mad Max (que é o da imagem), mas sem os tiros. Chama-se fragmentos do passado e deve ser lido do primeiro dia para o terceiro.
Fez em Dezembro um ano que eu e o João Villalobos lançámos os Prazeres Minúsculos. Depois, vieram o Luís Filipe, o Xavier, a Inês, o Miguel, a Filomena, a Cristina, o Fernando, e ainda mais. Aprendemos muito uns com os outros. O arquivo tem dezenas de contos e poemas e merece uma visita.
Já escrevi isto noutro sítio, mas a literatura na blogosfera está para a literatura em papel como um quarteto de jazz para um quarteto de cordas. Prefiro o de cordas, mas o de jazz pode ser uma experiência.
Neste caso, junta-se um grupo de amigos e toca umas coisas. É um ambiente cheio de fumo, ouve-se o tilintar dos copos e a ocasional gargalhada do público impaciente. No caso deste conto, o músico deu umas fífias a meio e ainda não sabe como acabar a improvisação (falta-lhe o golpe de asa). Mas acabará por levar a carta a Garcia, talvez na segunda-feira, se não lhe der a preguiça ou o esquecimento. Sugestão, caro leitor, se lhe apetecer fazer o link: não leia na pantalha, copie e imprima.
Neste conto sobre o tema da memória, fragmentos do passado, quero fazer uma alteração: não pode haver três livros na casa, mas sim uma lista telefónica. Se houvesse livros, o homem sem nome não precisava de os procurar.

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