Café ao lanche
Cabelos grisalhos e rugas, carinho e café ao lanche. É nisso que penso quando o autocarro da carreira 11 faz o caminho da infância. Sobe a encosta, baloiça no trava e arranca das curvas apertadas, embrulha-me as ideias e agita-me o estômago. Não me dou bem com o movimento. No mar, enjoo; em terra suporto mal os passeios. E é por isso que faço por não esquecer. Vou a caminho da infância, dos braços das minhas tias, do sabor da comida caseira.
Em casa, numa casa que conheço desde sempre, estão as mulheres da minha vida. Já estenderam a toalha e puseram a mesa. O almoço espera por mim no fogão. Ainda quente, feito como eu gosto, numa medida certa de tempero e dedicação. Para o lanche, há café e bolachas da Fábrica Santo António. São as minhas preferidas e as tias lembram-se. Ou sabem. Não há em mim gesto, virtude ou vício que não conheçam.
Servem-me almoço e histórias, mostram as inovações no jardim e os pintainhos novos no galinheiro. E falam do futuro porque há sempre um em casa das minhas tias. Para mudar a cerca ou construir um muro, para apanhar as ameixas ou o feijão. O ritmo das estações, o tempo das azáleas, a altura de dispor as orquídeas ou de podar as roseiras.
O quintal, a casa, os nossos dramas de família, o diz-que-diz. O nosso passado, o que fazemos. Eu, a minha tia Teresa, a tia Conceição, a tia Alice. As primas Adelaide e Vera. Em conversa de domingo, rememorando episódios, de rir ou chorar. Coisas que só nós entendemos. Peripécias, pedacinhos de vida partilhada.
Quem mais se lembra das covinhas que os sorrisos faziam à minha cara ou das vezes que entalei os dedos no Fiat 600 verde alface do meu tio Humberto? Onde irei desencantar um desespero como o que provoquei à minha tia Alice quando perdi os sentidos no chão da sua sala? E a devoção da minha tia Conceição no depósito de cinco contos para ajudar nos estudos em Lisboa?
As histórias fazem os laços, os laços fazem a família. A mim, coube-me esta, com estas mulheres. E, nelas, na sua força e nas fragilidades, sinto sempre que regresso a casa, ao mundo protegido da infância, a esse país de onde emergimos todos. É por isso que apanho a carreira 11, que suporto os balanços do autocarro e faço que não percebo que a paisagem mudou.
As terras foram ocupadas por blocos de apartamentos e construções clandestinas, os carros acumulam-se nas estradas, nos caminhos e becos. Na ronda, a polícia passa multas de estacionamento e, quando desço as escadas para o almoço no aconchego das tias, passo por caras que não reconheço. São os novos moradores.
Da voragem, que subiu pela encosta e engoliu o nosso tempo de colheitas e sementeiras, ficou a memória, a família, a casa dos meus avós, os vizinhos de sempre. E o carinho das mulheres da minha vida. De cabelos prateados, rugas no rosto, o coração no mesmo lugar. À minha espera.
(esta crónica foi publicada no DN-Madeira)
Em casa, numa casa que conheço desde sempre, estão as mulheres da minha vida. Já estenderam a toalha e puseram a mesa. O almoço espera por mim no fogão. Ainda quente, feito como eu gosto, numa medida certa de tempero e dedicação. Para o lanche, há café e bolachas da Fábrica Santo António. São as minhas preferidas e as tias lembram-se. Ou sabem. Não há em mim gesto, virtude ou vício que não conheçam.
Servem-me almoço e histórias, mostram as inovações no jardim e os pintainhos novos no galinheiro. E falam do futuro porque há sempre um em casa das minhas tias. Para mudar a cerca ou construir um muro, para apanhar as ameixas ou o feijão. O ritmo das estações, o tempo das azáleas, a altura de dispor as orquídeas ou de podar as roseiras.
O quintal, a casa, os nossos dramas de família, o diz-que-diz. O nosso passado, o que fazemos. Eu, a minha tia Teresa, a tia Conceição, a tia Alice. As primas Adelaide e Vera. Em conversa de domingo, rememorando episódios, de rir ou chorar. Coisas que só nós entendemos. Peripécias, pedacinhos de vida partilhada.
Quem mais se lembra das covinhas que os sorrisos faziam à minha cara ou das vezes que entalei os dedos no Fiat 600 verde alface do meu tio Humberto? Onde irei desencantar um desespero como o que provoquei à minha tia Alice quando perdi os sentidos no chão da sua sala? E a devoção da minha tia Conceição no depósito de cinco contos para ajudar nos estudos em Lisboa?
As histórias fazem os laços, os laços fazem a família. A mim, coube-me esta, com estas mulheres. E, nelas, na sua força e nas fragilidades, sinto sempre que regresso a casa, ao mundo protegido da infância, a esse país de onde emergimos todos. É por isso que apanho a carreira 11, que suporto os balanços do autocarro e faço que não percebo que a paisagem mudou.
As terras foram ocupadas por blocos de apartamentos e construções clandestinas, os carros acumulam-se nas estradas, nos caminhos e becos. Na ronda, a polícia passa multas de estacionamento e, quando desço as escadas para o almoço no aconchego das tias, passo por caras que não reconheço. São os novos moradores.
Da voragem, que subiu pela encosta e engoliu o nosso tempo de colheitas e sementeiras, ficou a memória, a família, a casa dos meus avós, os vizinhos de sempre. E o carinho das mulheres da minha vida. De cabelos prateados, rugas no rosto, o coração no mesmo lugar. À minha espera.
(esta crónica foi publicada no DN-Madeira)