quinta-feira, janeiro 04, 2007

Atrasada, sempre...

Sou atrasada. Os amigos, a família, os colegas, todos os que me conhecem sabem isso. Não me lembro da última vez que cheguei a horas a um encontro. Não é por não tentar. Porque tento. Levanto-me cedo para ter tempo, mas quando dou por mim estou em contra-relógio. Da casa de banho para o quarto, a vestir-me à pressa, a fechar portas e a correr pelas escadas. O telemóvel a tocar com alguém furioso do outro lado, a dizer que é sempre a mesma coisa.
E é. Sou assim. Já o era no liceu, quando amigas e namorados esperavam horas intermináveis no Largo do Colégio ou no Apolo. A verdade é que herdei o defeito da minha mãe. Quantas vezes desci escadas, quase a voar para fazer a tangente ao autocarro? A minha mãe afogueada, cabelo arranjado em segundos e Tokalon na cara, a dizer-me que a aflição não se repetia.
Claro que se repetia. Para o autocarro, para a missa, para onde fosse. Tanto e a tal ponto que, entre as minhas tias e em segredo, já se combinavam saídas com meia hora de tolerância. Era atrasada e pouco se podia fazer para alterar-lhe a natureza. Encantava-se, perdia-se das horas por inexplicáveis razões. Como eu.
É certo que aperfeiçoei o talento, que acrescentei atrasos à lista da minha mãe. Não tenho prazos, nem organização.Todos os anos pago multa na entrega do IRS, exaspero editores e fotógrafos como o meu "dá sempre tempo". E é por isso que ainda hoje o meu pai gosta de tratar-me por rola, a ave que faz o ninho tarde e nos últimos ramos das árvores. À mercê das tempestades e do vento.
Na burocracia, nas grandes e pequenas decisões do quotidiano. O atraso acompanha-me. Deixo passar, deixo para depois, jogo para a frente e fico embrulhada no presente. Num dia a seguir ao outro, neste acordar sempre com atraso, neste a correr pelas escadas, com alguém ao telemóvel, a dizer-me que é sempre a mesma coisa. E eu a saber que é.
Talvez por gostar de viver à mercê das tempestades ou por ser mais fácil adiar as preocupações. Não sei. É sempre difícil explicar como somos, porque fazemos de um modo e não de outro. E não há mal em ser o que se é, desde que nos faça felizes. Mesmo que a contar os segundos e minutos, a chegar tarde, mas ainda assim a tempo. Da vida, das oportunidades, dos encontros. Depressa ou devagar, o importante é que se chegue antes do guichet fechar ou que, pelo menos, exista a possibilidade pagar multa. O que é válido na burocracia, mas nem sempre o é nas questões essenciais.
É por isso, e por estar cansada de dar ao Estado 50 euros por cada IRS atrasado, que a promessa para 2007 é tentar chegar a horas. Ao que for que estiver marcado. À consulta do médico, às voltas com a minha tia Conceição ou a entrega dos textos aos editores. Chegar a tempo. É disto que me vou lembrar, que vou tentar não esquecer, que vou preservar do turbilhão. Do presente, do dia atrás do outro, da rotina. Da minha natureza, da tendência para viver à mercê das tempestades, para fazer o ninho tarde e nos últimos ramos nas árvores.

(esta crónica foi publicada no DN-Madeira)